segunda-feira, 11 de julho de 2011

Rudolf Allers - Psicanálise e Religião (ParteII)


Não esperemos poder convencer o psicanalista, nem nunca ele se considerará um herético. Nenhum herético, através dos séculos que conta o Cristianismo, se considerou alguma vez como tal. O herético, ou pretende estar dentro da Igreja, mesmo que defenda opiniões que divergem largamente dos seus ensinamentos, ou declara que é ele o único representante da verdade e da fé inalterada, e que a Igreja abandonou o caminho do seu Fundador, caminho esse que ele procura descobrir de novo.

Mas esperamos poder convencer os católicos e, sem dúvida, todos aqueles que acreditam em Cristo como Salvador e Redentor da humanidade. Muito desejaríamos poder conseguir isso, não só porque a atitude dos cristãos, no que se refere à psicanálise, ficaria melhor definida e fundamentar-se-ia melhor do que num vago sentimento de relutância e de ofensa moral, mas também porque a psicanálise é apenas um exemplo, ou ilustração, embora bastante notável, de uma atitude mental que se desenvolveu a ponto de dominar a mentalidade geral no decorrer do último século. Essa atitude tornou-se então muito influente, embora as suas raízes remontem ao passado da cultura ocidental. Um melhor entendimento daquilo que a psicanálise é, e um melhor conhecimento da natureza do espírito que ela cria, habilitar-nos-ão a seguirmos com mais clareza os rastos desse mesmo espírito em outras manifestações do nosso mundo moderno.

O caráter herético da psicanálise tornar-se-á claramente visível quando tivermos posto a descoberto as suas raízes e inspecionado os seus antecedentes. Será isso a nossa tarefa no próximo capítulo. Aqui, apenas nos referimos ao bem conhecido fato de que as heresias, através dos séculos do Cristianismo, sempre sentiram a necessidade de afirmar, cada vez mais, os seus direitos. É como se os hereges sentissem a consciência culpada e, com o fim de a fazerem calar, se sentissem forçados a apregoar as suas supostas razões difamando a Igreja, contra a qual se levantavam. [...]

Os católicos sabem também, não obstante se sentirem alarmados com a idéia de não serem modernos, que tudo aquilo que realmente contradiz os ensinamentos da sua fé não pode ser verdadeiro. Sabem, como coisa certa, que uma filosofia ou uma ciência que desrespeita concepções fundamentais do Catolicismo há-de acabar por desaparecer, por muito grande que seja o seu sucesso na hora presente. Sustento que a psicanálise é um enorme e perigoso erro. E o meu interesse é evitar que o maior número de pessoas possível — e, em primeiro lugar, tantos cristãos quanto possível — caiam nas garras de tal erro.

Há uma concepção fundamental na religião cristão que não é apenas desprezada mas, simplesmente, negada pela psicanálise. É a concepção do pecado. Em psicanálise não há pecado. A sua filosofia é decididamente determinista e a noção do pecado pressupõe o livre arbítrio. Também não há lugar para a noção de pecado neste sistema, porque o comportamento humano, de acordo com os princípios da antropologia freudiana, não depende das forças conscientes, mas sim de forças inconscientes. Isto é apenas uma conseqüência lógica do fato de que a psicanálise interpreta a consciência, não como o reconhecimento da conformidade ou não conformidade com as leis eternas da moral ou dos valores, mas como a expressão de um equilíbrio restabelecido, ou perturbado, de forças instintivas. A psicanálise vê necessariamente na consciência um mero fenômeno psicológico. Tal concepção da natureza humana não poderá exercer qualquer coisa que se assemelhe a responsabilidade.

Desnecessário será dizer que a psicanálise nada tem de ver com quaisquer noções que se refiram ao sobrenatural. Esta negativa completa do sobrenatural não é própria duma ciência empírica que, prudentemente, limita as suas investigações aos campos acessíveis à razão humana. O verdadeiro cientista tem grande respeito pelos fatos, não se pronuncia sobre as coisas, unicamente porque as não pode alcançar pelos seus métodos, e evita emitir juízos sobre assuntos cuja compreensão não está dentro dos poderes da fraca razão do homem. Mas o psicanalista vem dizer-nos que toda a crença no sobrenatural, seja na graça de Deus, como no próprio Deus, na eficácia dos sacramentos ou na imortalidade da alma, são tudo idéias que dimanam de fatores instintivos, que esta psicologia se orgulha de ter descoberto e privado assim da sua força impressiva. A psicanálise não vê diferença alguma entre a religião católica, os seus usos, ritos e sacramentos por um lado, e os mais primitivos e fantásticos costumes dos aborígines da Austrália ou da África central pelo outro. Dificilmente se encontrará um artigo de fé que não tenha sido submetido à análise, e que não tenha sido objeto de uma "explicação" psicanalítica. Estas chamadas explicações causariam abalo num espírito católico, se não fossem manifestamente baseadas numa absoluta incapacidade para compreender a doutrina que se pretende explicar.

Nos parágrafos anteriores apenas nos referimos às relações da psicanálise com a fé católica sem nada termos dito a respeito da moral católica. Vamos agora dizer alguma coisa sobre tal assunto.

A psicanálise, considerada como tal, nada tem a dizer sobre moral. Quer-se uma ciência, e as ciências podem fazer afirmações apenas sobre o que é, nunca sobre aquilo que devia ser. Esta é que é a verdadeira ciência. Mas não é próprio de verdadeiros cientistas o uso que eles atualmente fazem da ciência para propagar qualquer "reforma" da moral, ou para declararem que esta ou aquela atitude está, ou deixa de estar, de acordo com a moral. Tais afirmações feitas em nome da ciência são, sem dúvida, não a expressão de conclusões que os fatos impusessem ao espírito, mas a expressão de convicções que tem uma origem completamente diferente. A ciência apenas nos pode dizer os meios de que nos podemos servir para atingir algum fim, mas nada conhece acerca desses fins. A medicina não decreta que a saúde tem de ser conservada; apenas nos ensina como devemos proceder para a conservar. A expressão, tantas vezes ouvida, de "educação científica", ou significa que devemos aprender na ciência a melhor forma para realizarmos os nossos fins, ou não significa coisa alguma.

Todo aquele que acreditar que a ciência é capaz de fazer qualquer afirmação sobre a razão por que as pessoas têm de ser educadas não conhece coisa alguma sobre a verdadeira natureza da educação. E o mesmo sucede com a moral: "ética científica" é uma expressão sem sentido algum.

Mas mesmo o cientista é um ser humano e, como tal, não pode deixar de ter as suas convicções, os seus ideais e os seus desejos. É apenas natural, embora não seja justo, que ele procure, ainda que "inconscientemente", apresentar as suas idéias e ideais pessoais como se derivassem das ciências. As ciências que têm por objeto o homem não são as que estão especialmente arriscadas a estenderem-se para um campo onde não têm competência. Pelo fato de que a saúde é um bem naturalmente desejado pelo homem, a medicina facilmente chega a acreditar que os seus ensinamentos sobre medidas higiênicas são da mesma natureza dos preceitos morais. Pelo fato de que a psicologia conhece que um espírito funcionando normalmente é um valor desejado, o psicólogo julga-se autorizado a enunciar regras sobre educação. A psicologia médica está inda mais propensa a cometer este erro do que qualquer outra espécie de psicologia. O médico psicólogo observou muitíssimas vezes as desastrosas conseqüências que uma educação errada pode ter no desenvolvimento do caráter e da personalidade. Portanto, vem simplesmente declarar que este ou aquele método de educação "tem" de ser adotado. assim, mais necessário se torna examinar cuidadosamente o espírito de uma psicologia que se julga com o direito de impor à educação os seus métodos e alvos.

Educação é mais do que instrução; é, primariamente, a construção de uma personalidade moral. A ética e a educação estão, portanto, intimamente correlacionadas. E a educação não termina depois de se ter freqüentado uma escola superior ou um colégio: praticamente, a educação nunca termina. Somos educados pelos fatos, pelas influências do meio ambiente e pelas idéias, de forma que temos de nos educar a nós mesmos.

Uma psicologia nascida dum espírito decididamente anti-cristão não pode ser senão excessivamente perigosa. Mesmo que o psicanalista se esforce por evitar qualquer ofensa às idéias e sentimentos religiosos ou morais do paciente, não o poderá conseguir. O seu método, as suas interpretações, e toda a sua mentalidade são de uma natureza manifestamente hostil ao espírito cristão. Essa mentalidade dá-se a conhecer a todo o momento, e encontra-se implícita em cada uma das mais triviais observações. Ainda que o analista esteja resolvido a abster-se de toda a influência sobre a fé ou moral do paciente, a sua resolução será ineficaz, e ele não poderá deixar de transmitir a esse paciente o contágio de um espírito anti-cristão.

Há alguma coisa profundamente errada neste espírito, e o que está errado melhor se aperceberá, se considerarmos as idéias que a psicanálise professa a respeito do homem normal. A teoria de Freud era, e ainda o é em grande extensão, um processo para a cura de doentes nervosos. Todo o tratamento tem de ter como ponto de referência alguma idéia de normalidade, porque a obtenção dessa normalidade é o sinal característico de que o tratamento foi bem sucedido. Freud disse, mais do que uma vez, que um homem é normal quando está apto a trabalhar e a gozar a vida. Não há nada mais na concepção psicanalítica sobre a natureza normal do homem. Gozar implica, sem dúvida, a adaptação à realidade, desde que, não sendo assim, o desprazer seria maior do que o prazer.

Esta concepção foi estabelecida de novo, por exemplo, por Hendriks, que declara que a culminação do desenvolvido ego consiste em o indivíduo se tornar capaz de manter a sua existência, e assegurar uma satisfação adequada dos instintos libidinais e agressivos, num ambiente socializado de adultos. Estas definições são, como se está a ver, muito incompletas; os fatores morais são absolutamente ignorados ou, antes, estão incluídos na noção de ajustamento ao meio social. É um erro largamente divulgado o acreditar-se que a moral está limitada às relações com os nossos vizinhos: desprezam os deveres para com a própria pessoa, como desprezam os deveres para com Deus.

Daqui se segue que a psicanálise se mostra incapaz de avaliar devidamente certos fenômenos, como o sentimento de culpa ou a consciência. A consciência tem origem — observa um autor — numa identificação hostil. Vê-se que este autor não teve, no seu espírito, a mais rápida visão do fenômeno a que se refere. Outro diz-nos que o desejo de confessar o pecado cometido — não precisa de ser no confessionário, porque este desejo pertence à natureza humana — resulta de um impulso de revelação, que está relacionado com o "instinto parcial" do exibicionismo. E há ainda um terceiro autor que nos vem dizer que a necessidade da confissão está relacionada com o erotismo oral. Não será preciso multiplicar os exemplos. Os três já mencionados revelam uma ignorância de tudo quanto se refere a religião e a psicologia geral.

A concepção naturalista da natureza humana vem colorir todas as afirmações feitas sobre moral. Os verdadeiros mandamentos, as leis eternas, são coisas que não existem, de acordo com este ponto de vista. E tal mentalidade não pode senão ter uma influência altamente destrutiva sobre qualquer pessoa que esteja possuída de convicções diferentes. É possível que o tratamento psicanalítico de uma pessoa nessas condições venha a ser mal sucedido, se as convicções são suficientemente fortes, e se a diferença entre elas e as do analista se nota com clareza, ou poderá ainda suceder que esse resultado um gradual desmoronamento de tais convicções, devido à pressão contínua do espírito hostil do psicanalista.

Fonte: Permanência

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