domingo, 10 de julho de 2011

Metodologia tomista no estudo da Psicologia (Parte II)

Lamartina de Holanda Neto¹

8) Aplicação dos métodos básicos à Psicologia Tomista

Como vimos, São Tomás divide o conhecimento em filosófico e científico. A Filosofia, por sua natureza, se apóia mais no método sintético e a Ciência, no analítico. Porém, uma vez que ambos são mutuamente úteis, há um constante intercâmbio de aplicação entre os dois.

De acordo com Brennan (1969b), a Psicologia de São Tomás é um feliz exemplo de equilíbrio na aplicação dos dois métodos. Pois quando trata dos aspectos materiais do objeto de seu estudo, tende mais a utilizar o método analítico- indutivo. E quando se ocupa dos aspectos formais, tende a servir-se do sintético-dedutivo, partindo do já conhecido para atingir novas explicitações. 

9) O problema do objeto

O moderno critério de validade científica para o estudo de um determinado objeto é que o mesmo seja observável por qualquer pessoa que se disponha a fazê-lo adequadamente, e tanto quanto possível livre das inferências subjetivas do pesquisador e do sujeito que está sendo estudado (BRAGHIROLLI et al., 2005). Como, porém, aplicar esse critério para o objeto de estudo da Psicologia Tomista, que é a alma, a qual, por definição, não pode ser observada diretamente?

Diante do dilema, alguns estudiosos preferiram erigir como objeto da Psicologia o comportamento estritamente observável (WATSON, 1930; SKINNER, 1964, 1953, 1938), por ser suscetível de experimentação científica. A corrente predominante em nossos dias, entretanto, não é tão estrita, adotando o comportamento, num sentido mais amplo, como objeto (BRAGHIROLLI et al., 2005). Sem embargo, quando o estudioso se vê diante de situações incontornáveis, nas quais muitas informações só estão accessíveis por meio de descrições subjetivas, pode ser levado a aceitar a combinação dos dados de experiências subjetivas com elementos da observação objetiva. É o que podemos notar em vários dos testes psicológicos existentes hoje em dia, especialmente nos chamados projetivos.

São Tomás, porém, não via necessidade de esquivar-se da questão. Pelo contrário, abordava-a de frente, aceitando como óbvio o fato de o objeto de estudo da Psicologia ser a alma. Como a investigava, contudo?

10) O método tomista

São Tomás estudava a alma principalmente por meio da introspecção. Embora pouco considerada - ou mesmo contestada - por muitos dos psicólogos modernos, a introspecção foi o principal método de estudo adotado nos primórdios da Psicologia.

A metodologia moderna considera a observação como um dos métodos científicos válidos, dividindo-a em naturalista e controlada, juntamente com a experimentação, os levantamentos, os testes e os estudos de casos (BRAGHIROLLI et al., 2005). A introspecção é uma variante da observação, consistindo na análise das próprias reações interiores, conscientes ou subconscientes (estas, após treinamento). Pode ser feita tanto de modo naturalista exclusivo (escola de Leipzig), como misto ou controlado (escola de Würzburg), segundo o Pe. Manuel Barbado (1943). Não exclui a experimentação e pode ser validamente adotada tanto nos levantamentos e testes, quanto nos estudos de casos.

A razão de sua particularidade é que se trata do único método em que o sujeito e o objeto coincidem. Sua desvantagem é a susceptibilidade às inferências subjetivas. Mas se utilizada com retidão, pode ser uma rica fonte de informações.

Oswald Külpe (1862-1915), considerado por Brennan (1969b) como o primeiro psicólogo moderno a fazer um estudo sobre metodologia, afirma que "o experimento não pode substituir a introspecção em Psicologia, do mesmo modo que não pode substituir a observação em Física" (KÜLPE, 1895, p. 10, apud BRENNAN, 1969b, p. 43). Brennan (1969b, p.42) chega a afirmar que, segundo São Tomás, "a introspecção é o meio mais seguro de acesso aos dados da Psicologia", e "a ferramenta básica" para obtê-los.

De acordo com o Cônego Henri Collin (1949, p. 45), podemos definir a introspecção como "um olhar minucioso ao interior de si mesmo para examinar mentalmente um de seus atos e analisá-lo como um objeto distinto". Não se trata, portanto, de uma tomada de consciência espontânea, mas de uma verdadeira reflexão ou um exame sobre os próprios atos mentais.

Naturalmente, nem São Tomás nem os psicólogos que seguem a orientação tomista desconsideram o valor da observação externa como dos demais métodos científicos, tanto que vários deles se alinharam com a Psicologia Experimental, principalmente na primeira metade do século XX (cf. BARBADO, 1943). Mas, como assinala e resume Collin (1949, p. 48), o método objetivo (no sentido de "não-subjetivo"), apesar de "necessário e fecundo, mutila a Psicologia se pretende ser exclusivo".

11) Cientificidade do método aristotélico-tomista

Contudo, não se pode tachar de pouco científico o método tomista, uma vez que ele não só se baseou no aristotélico, mas até o enriqueceu. Como se sabe, Aristóteles de Estagira (384-322 a.C.) é considerado o primeiro filósofo a formular uma doutrina sistemática sobre os processos da vida psíquica e sobre a alma propriamente dita, especialmente nos seus três livros De Anima. E é apontado como o primeiro a valorizar a observação, inclusive a introspecção, como metodologia de estudo.

Apesar de alguns autores o considerarem basicamente racionalista (cf. BARBADO, 1943), do ponto de vista metodológico, vários outros o vêem não apenas como iniciador da Psicologia Filosófica, mas também como pai da Psicologia Empírica ou Experimental, embora esta só tenha surgido oficialmente no século XIX.

Com efeito, o Pe. Barbado (1943) traz em favor dessa tese citações de vários autores, tais como: Soury, Baldwin, Stout, Hoffding, Villa, Dessoir, Dunlap, Ebbinghaus, Külpe, entre outros. Suas declarações vão na linha de que não se pode chamar a Psicologia Experimental de nova pela simples razão de que, como diz Myers (1911, p. 1, apud BARBADO, 1943, p. 99) "o experimento em Psicologia é pelo menos tão antigo quanto Aristóteles", ou, como afirma Kiesow (1923, p. 214, apud BARBADO, 1943, p.101): "No sistema de Aristóteles encontramos o primeiro tratado científico dos fatos da alma".

12) Objeção criteriológica à introspecção

Em que pesem tantas e abalizadas opiniões, alguém poderia objetar que o método da observação, especialmente quando introspectiva, estará sempre condicionado pelo caráter subjetivo que lhe é intrínseco.

Em outros termos, o indivíduo pode "observar" apenas aquilo que lhe convenha, quer por razões conscientes, quer subconscientes, principalmente quando o assunto diga respeito à sua subjetividade.

Tal objeção "objetivista", entretanto, parece carecer de objetividade.

Com efeito, a mesma crítica poderia ser aplicada ao método experimental, ao estatístico ou ao instrumental-científico. Pois onde está o ser humano, aí está a subjetividade, revista-se ela do aparato tecnológico que se revestir. Nesse sentido, consta que Churchil teria chegado a comentar, jocosamente, que só acreditava nas estatísticas que ele mesmo falsificava (MANSEL, 2003)...

A exceção, portanto, não invalida a regra. A utilização fraudulenta ou inadequada de um método científico, seja ele qual for, não é pretexto suficiente para invalidar o esforço do conhecimento humano.

Controvérsias à parte, o fato histórico é que São Tomás serviu-se da introspecção, além do raciocínio especulativo, indutivo e dedutivo, como método de trabalho. Se foi feliz ou não em sua escolha, o estudo de suas contribuições
à Psicologia poderá ajudar a julgar.

13) Contribuição da Psicologia Tomista à metodologia psicológica

O fim do presente artigo é analisar apenas uma dessas contribuições, a primeira de uma longa série de outras.

No que consiste ela? Com antecipação de séculos, São Tomás enfrentou o problema da acessibilidade ao objeto da Psicologia acima referido, e o solucionou magistralmente ao adotar como "instrumento de pesquisa" o único disponível e capaz de observar a alma, ou seja, a própria alma.

E não se limitou simplesmente a observá-la. Empregando também o único "instrumental" com essa capacidade, que é o raciocínio, desenvolveu todo um conjunto de juízos e inferências com base nos dados que coletou.

Embora se servindo de um método caracteristicamente medieval, ele utilizou a melhor "tecnologia de ponta" disponível para esse estudo específico, ou seja, a própria mente humana, nunca superada, nem mesmo superável, pelos mais avançados computadores.

A introspecção serviu-lhe, portanto, como base e instrumento para a edificação de toda uma estrutura conceitual, hoje conhecida como Psicologia Tomista (BRENNAN, 1960), vastíssimo campo para investigações aos que se interessam pelo comportamento e pela natureza humana subjacente ao mesmo.

"Pelo fruto se conhece a árvore" (Mt 12, 33).



1) O autor é médico psiquiatra, especialista em Teologia Tomista, é professor de Psicologia no Instituto Filosófico
Aristotélico-Tomista e no Centro Universitário Ítalo Brasileiro.

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