terça-feira, 12 de julho de 2011

Psicólogos católicos são vítimas de preconceito


Maria José Vilaça, uma das promotoras da Associação de Psicólogos Católicos, garante que estes profissionais têm sido ‘vítimas de preconceito’, e alguns até ‘vilmente tratados’, porque defendem a vida e defendem posições semelhantes às do Papa Bento XVI.

Em declarações ao SAPO, Maria José Vilaça admite que ser psicólogo e ser católico comporta dificuldades para este grupo profissional: ‘as pessoas têm já um preconceito’ – preconceito que, de resto, atinge também os restantes fiéis, hoje em dia, defende.

‘As pessoas são um bocadinho desprezadas’ por expressarem a sua fé, defende: ‘há um preconceito mesmo antes de as pessoas falarem’ e, por isso, ‘há pessoas que têm receio de expressar a sua fé’ - numa alusão às palavras de Bento XVI, que ontem lamentou a existência de ‘crentes envergonhados’ nos dias que correm.

Ser psicólogo e ser católico
Para a promotora da Associação de Psicólogos Católicos, também estes profissionais devem incorporar na sua profissão os princípios da fé católica – e garante até que há pacientes que procuram especificamente profissionais neste segmento.

‘As pessoas vêm à procura de um psicólogo católico, porque passaram por outros que não tinham qualquer orientação religiosa’, explica Maria José Vilaça: ‘as pessoas só querem ir a um psicólogo católico que compreenda a sua religião e que não vá contra aquilo que a Igreja diz’.

Diz a responsável pela associação, que há uma forma de fazer Psicologia ‘com uma visão antropológica do homem que é a visão cristã’. ‘Queremos que haja uma visão do Homem baseada numa antropologia católica’ na abordagem do psicólogo, assente numa visão do ‘Homem à imagem e semelhança de Deus’, e por isso mais em consonância com a Igreja, defende.

Maria José Vilaça dá um exemplo: ‘Alguns psicólogos destroem famílias, (…) quando dizem «tem todo o direito a ser feliz». As pessoas procuram num psicólogo um bom argumento e pretexto parra abandonar uma situação familiar complicada, mas a solução nem sempre é sair da situação’.

Um manifesto para o Papa
Em declarações ao SAPO, a promotora da Associação de Psicólogos Católicos recordou também que foi enviado ao Papa Bento XVI (a 10 de Maio) um ‘manifesto de lealdade e fidelidade’. Maria José Vilaça explica porquê: ‘achámos que era importante fazê-lo (...) e que, para ele, podia ser um consolo ter mais um grupo de pessoas a apoiá-lo’.

‘Era uma forma de nos sentirmos unidos’, refere.

+ O texto do manifesto a enviar ao Papa;

Marco Leitão Silva

Fonte:
noticias.sapo.pt

segunda-feira, 11 de julho de 2011

A Caverna - Livro VII da "República" de Platão

Mais um trecho de aula. Espero que gostem!

Raimundo Lúlio e As Cruzadas

Rudolf Allers - Psicanálise e religião (Parte III)


O perigo de a moral não naturalista ser destruída pela análise, mesmo que o psicanalista não tenha intenção de o fazer, é sempre muito grande, porque a moralidade — ou amoralidade — do freudismo pode tornar-se uma forte tentação. O psicoterapeuta logo é encarado pelo paciente como pessoa de autoridade; chamem a isso transferência, se assim o quiserem, porque o nome pouco importa. Uma concepção da vida que apela para o lado instintivo do homem exerce sempre uma sedução natural e, quando tal sedução é fortalecida pela autoridade, poderá tornar-se irresistível.

Não se pode dizer com verdade que os psicanalistas preconizem um relaxamento de costumes, mas é certo que eles concebem a moral por uma forma que é exatamente o oposto daquilo que um católico sabe que a lei moral implica. Isto refere-se em primeiro lugar à sexualidade, mas o mesmo sucede com qualquer outro aspecto do comportamento. E temos de chegar à conclusão de que o católico se deve abster de qualquer íntimo contato com as idéias freudianas. Se ele tiver dessas idéias inteiro conhecimento, será o primeiro a evitar tal contato; no caso contrário, é necessário pô-lo se sobreaviso.

Alguns adversários da psicanálise têm procurado acentuar a "imoralidade" da teoria e da sua atitude prática, no que diz respeito a certos problemas morais. o analista, dizem eles, é obrigado a defender pontos de vista incompatíveis com a moralidade cristã e, portanto, não pode deixar de ter uma influência destrutiva sobre o comportamento moral dos indivíduos e sobre as idéias morais do público. Este ponto precisa de uma elucidação.

A concepção que Freud e a sua escola formaram da natureza humana é, sem dúvida, muito diferente da concepção formada pela moral cristã e, principalmente, pela moral católica. O "princípio do prazer", mesmo depois da sua transformação em "princípio de realidade" não é a espécie de força motriz que a moral cristã supõe estar no fundamento do comportamento moral. A idéia de que a natureza humana está em ordem e "normal", desde que o indivíduo esteja apto para trabalhar e para gozar, não é idéia que possa ser aceitada pela ética católica. Estes aspectos da psicanálise são mais importantes, para responder à questão, do que a insistência de Freud sobre a sexualidade. Por muito errada que seja a noção de uma libido estendendo-se a tudo, não precisa de ser imoral.

O fato de que a psicanálise seja um sistema puramente naturalista e incapaz de avaliar a religião e o comportamento religioso em seu verdadeiro valor, é, sem dúvida, um sério inconveniente. Alguns analistas sustentam que não há necessidade de pôr em perigo as crenças religiosas de um indivíduo, desde que tais crenças não sejam o resultado de fatores patológicos ou um obstáculo para a recuperação da saúde mental. No entanto, será difícil ver como o analista, por muito que queira, evitará pôr em risco a atitude religiosa. Qualquer paciente, mesmo de inteligência média, não pode deixar de compreender que o espírito geral daquela teoria com a qual se relacionou durante o tratamento é completamente hostil às suas crenças religiosas. E pouco importa o fato de o paciente refletir ou deixar de refletir nisso.

O antagonismo entre a psicanálise e a moral católica, na medida em que tal antagonismo está implicado no sistema da filosofia e da psicologia de Freud, é uma coisa; o consciente eventual e a influência direta, aconselhando o paciente a agir contra os princípios da moral católica, é outra. Se se soubesse que muitos ou alguns psicanalistas aconselhavam os seus pacientes de forma que lhe sugerissem um comportamento contrário à moral, o perigo deste sistema tornar-se-ia, sem dúvida, muitíssimo grande.

Algumas das idéias sustentadas pelos psicanalistas são contrárias às concepções católicas, sem que sejam, no entanto, exclusivamente características do freudismo. Desnecessário será dizer que um analista, encontrando uma pessoa a braços com dificuldades domésticas, sem qualquer esperança e incapaz de continuar a vida com o marido ou com a esposa, acabará por lhe aconselhar a separação. Tal conselho poderá não ser mau, mas implica, na mente do analista, a idéia de que, depois da separação, essa pessoa poderá voltar a casar-se com alguém que lhe dê melhor vida. Esse conselho podia ter sido dado por qualquer médico não católico; as convicções que o originaram não são especificamente freudianas, pois pertencem a um conjunto de idéias comuns a todas aquelas pessoas que julgam possuir "um espírito liberal". O mesmo se pode dizer da sugestão para se procurar a satisfação sexual pré-matrimonial. Seria diferente, se se sugerisse a uma pessoa casada que, por qualquer motivo, procurasse relações sexuais extra-matrimoniais.

É muito difícil saber qual é a atitude normal dos analistas no que se refere a tais problemas, bem como é também muito difícil ter a certeza de que certos relatos publicados são inteiramente dignos de crédito. O tratamento psicanalítico pode, em alguns casos, principalmente se não foi bem sucedido, deixar um ressentimento definido no ânimo do paciente, e esse estado mental poderá muito bem deturpar, mesmo sem qualquer intenção consciente de calúnia ou de prevaricação, a memória de coisas mencionadas durante as horas de análise. É corrente, em alguns tipos da personalidade nevrótica, um certo desrespeito pela verdade objetiva; por isso, os relatos que nos são fornecidos por doentes nervosos têm de ser olhados com muita precaução. Alguns psicanalistas podem ter professado uma atitude demasiadamente "liberal", no que diz respeito a certas leis morais, mas há ainda razão para perguntar se tal atitude resulta do fato de serem sequazes de Freud, ou se resulta da sua mentalidade geral. Não nos devemos esquecer de que muitas idéias, definidamente anti-católicas, no que se refere a moral, têm partido de pessoas que não eram psicanalistas. As opiniões defendidas pelos bolchevistas sobre o casamento, sobre relações sexuais etc., pelo menos na primeira fase do seu domínio, não dependem de qualquer influência exercida pelos psicanalistas. Não há dúvida de que os pontos de vista de Freud contribuíram para propagar as discussões sobre assuntos sexuais. A insistência com que ele se referiu à sexualidade, e as suas provas, aparentemente científicas, da importância fundamental dos fatores sexuais na natureza humana, fortaleceram a posição daqueles que dirigiam os seus ataques contra a moral cristã. Mas não se pode dizer que o próprio Freud pregasse diretamente uma moral anti-católica. No entanto, pregou-a implicitamente.

Tanto quanto os relatórios podem ser acreditados, fica-se, sem dúvida, com a impressão de que alguns psicanalistas não sentem qualquer relutância em aconselhar atos decididamente imorais, especialmente — e até exclusivamente — no que se refere ao comportamento sexual. Num congresso de psiquiatras franceses realizado há anos, o Dr. Genil-Perrin referiu-se a numerosos casos em que ele e outros intervieram, e em que era freqüente darem-se conselhos de tal natureza. Mas é impossível lançar mão de cifras dignas de crédito. Não podemos saber quantos psicanalistas teriam, eventualmente, procedido dessa forma, nem tampouco podemos saber quantas vezes eles se viram obrigados a fazê-lo. A única coisa de que podemos estar certos é que o sistema da psicanálise não contém fator algum que iniba o analista de se servir de tal expediente. E sabemos também que existe um grande número de relatórios que mencionam essa atitude por parte de alguns psicanalistas, mas sendo de presumir que nem todos eles são falsos ou exagerados. No entanto, a justiça pede que limitemos o nosso juízo a fatos que podem ser provados, e a única coisa que se pode provar é o antagonismo essencial que existe entre o espírito geral do freudismo e a mentalidade católica. Isto, contudo, seria suficiente para obrigar os católicos a evitarem, tanto quanto pudessem, o contato com a psicologia psicanalítica, e a evitarem qualquer situação que pudesse dar ao analista, mesmo contra a vontade da pessoa, ocasião de influir sobre as suas idéias.

A enumeração das proposições da escola de Freud que brigam incontestavelmente com a fé cristã podia ainda continuar por algum tempo. Julgamos, porém, que dissemos já o bastante. Nenhum católico poderá professar tais idéias — a idéia da religião como uma neurose obrigatória, a idéia de Deus como sendo a imagem do pai, e a idéia da comunhão remontar à refeição totemística etc. — idéias essas que não podem ser consideradas senão como falsas, para não dizermos sacrílegas. Mas há sempre uma objeção. Não será possível separar o método da sua inaceitável filosofia? Não poderemos nós, embora sejamos cristãos, usar o instrumento fornecido pela psicanálise? Não poderemos pôr de parte a concepção naturalista, as idéias descabidas sobre religião, a negação da liberdade, o papel exagerado atribuído aos instintos, e "batizar", digamos assim, a psicanálise, mais ou menos como se diz que Santo Agostinho "cristianizou" o Neo-Platonismo e S. Tomás "batizou" Aristóteles? Estes filósofos pagãos também ensinaram coisas que a filosofia cristã nunca pôde aceitar, mas ensinaram outras coisas que eram verdadeiras, ou que, pelo menos, com alguma modificação, podiam ser verdadeiras. Se a filosofia cristã tivesse procedido com a filosofia pagã como se deseja que o católico proceda para com a psicanálise, isso representaria uma enorme perda para a humanidade, e teria talvez obstado o desenvolvimento da verdadeira filosofia cristã. Que razão há, portanto, para tal radicalismo perante a psicanálise, radicalismo esse de que a Igreja nunca se sentiu possuída no passado?

A resposta é, simplesmente, que tal analogia não pode existir. Tentamos mostrar, no capítulo oitavo, que se não pode separar a filosofia do método, e que aquele que adota o segundo tem, necessariamente, de perfilhar a primeira. Mas há outra razão para a intransigência que aqui consignamos. A psicanálise não está para o católico na mesma relação em que a filosofia pagã estava, nos primeiros séculos da cristandade, para com a filosofia católica. A psicanálise é mais semelhante ao Maniqueísmo, ou a qualquer outra das grandes heresias, do que à filosofia de Plotino ou de Aristóteles. E a Igreja nunca transigiu, por pouco que fosse, com qualquer heresia.

O espírito da psicanálise pode-se chamar, e com muita razão, espírito pagão, mas não é o paganismo dos tempos pré-cristãos; é o paganismo que surgiu quando a Cristandade já existia há séculos. E é um espírito completamente diferente. O paganismo dos velhos tempos morreu, pelo menos nos países de civilização ocidental, e não há possibilidade de o fazer reviver. Tal espírito não pode tornar a aparecer, porque as alterações que o pensamento humano sofreu, debaixo da influência de dois mil anos de Cristianismo, não podem voltar atrás. O neo-paganismo não é um regresso aos tempos de Platão ou de Sêneca: é, simplesmente, uma revolta.

Para compreender a natureza desse espírito, é necessário examinar a origem da psicanálise e as forças que contribuíram para o seu aparecimento. E teremos também de investigar as condições que tornaram possível o surpreendente sucesso das concepções freudianas. Desta maneira chegaremos — ao menos é essa a nossa esperança — a um melhor conhecimento da verdadeira natureza desta teoria.

Fonte: Permanência

Rudolf Allers - Psicanálise e Religião (ParteII)


Não esperemos poder convencer o psicanalista, nem nunca ele se considerará um herético. Nenhum herético, através dos séculos que conta o Cristianismo, se considerou alguma vez como tal. O herético, ou pretende estar dentro da Igreja, mesmo que defenda opiniões que divergem largamente dos seus ensinamentos, ou declara que é ele o único representante da verdade e da fé inalterada, e que a Igreja abandonou o caminho do seu Fundador, caminho esse que ele procura descobrir de novo.

Mas esperamos poder convencer os católicos e, sem dúvida, todos aqueles que acreditam em Cristo como Salvador e Redentor da humanidade. Muito desejaríamos poder conseguir isso, não só porque a atitude dos cristãos, no que se refere à psicanálise, ficaria melhor definida e fundamentar-se-ia melhor do que num vago sentimento de relutância e de ofensa moral, mas também porque a psicanálise é apenas um exemplo, ou ilustração, embora bastante notável, de uma atitude mental que se desenvolveu a ponto de dominar a mentalidade geral no decorrer do último século. Essa atitude tornou-se então muito influente, embora as suas raízes remontem ao passado da cultura ocidental. Um melhor entendimento daquilo que a psicanálise é, e um melhor conhecimento da natureza do espírito que ela cria, habilitar-nos-ão a seguirmos com mais clareza os rastos desse mesmo espírito em outras manifestações do nosso mundo moderno.

O caráter herético da psicanálise tornar-se-á claramente visível quando tivermos posto a descoberto as suas raízes e inspecionado os seus antecedentes. Será isso a nossa tarefa no próximo capítulo. Aqui, apenas nos referimos ao bem conhecido fato de que as heresias, através dos séculos do Cristianismo, sempre sentiram a necessidade de afirmar, cada vez mais, os seus direitos. É como se os hereges sentissem a consciência culpada e, com o fim de a fazerem calar, se sentissem forçados a apregoar as suas supostas razões difamando a Igreja, contra a qual se levantavam. [...]

Os católicos sabem também, não obstante se sentirem alarmados com a idéia de não serem modernos, que tudo aquilo que realmente contradiz os ensinamentos da sua fé não pode ser verdadeiro. Sabem, como coisa certa, que uma filosofia ou uma ciência que desrespeita concepções fundamentais do Catolicismo há-de acabar por desaparecer, por muito grande que seja o seu sucesso na hora presente. Sustento que a psicanálise é um enorme e perigoso erro. E o meu interesse é evitar que o maior número de pessoas possível — e, em primeiro lugar, tantos cristãos quanto possível — caiam nas garras de tal erro.

Há uma concepção fundamental na religião cristão que não é apenas desprezada mas, simplesmente, negada pela psicanálise. É a concepção do pecado. Em psicanálise não há pecado. A sua filosofia é decididamente determinista e a noção do pecado pressupõe o livre arbítrio. Também não há lugar para a noção de pecado neste sistema, porque o comportamento humano, de acordo com os princípios da antropologia freudiana, não depende das forças conscientes, mas sim de forças inconscientes. Isto é apenas uma conseqüência lógica do fato de que a psicanálise interpreta a consciência, não como o reconhecimento da conformidade ou não conformidade com as leis eternas da moral ou dos valores, mas como a expressão de um equilíbrio restabelecido, ou perturbado, de forças instintivas. A psicanálise vê necessariamente na consciência um mero fenômeno psicológico. Tal concepção da natureza humana não poderá exercer qualquer coisa que se assemelhe a responsabilidade.

Desnecessário será dizer que a psicanálise nada tem de ver com quaisquer noções que se refiram ao sobrenatural. Esta negativa completa do sobrenatural não é própria duma ciência empírica que, prudentemente, limita as suas investigações aos campos acessíveis à razão humana. O verdadeiro cientista tem grande respeito pelos fatos, não se pronuncia sobre as coisas, unicamente porque as não pode alcançar pelos seus métodos, e evita emitir juízos sobre assuntos cuja compreensão não está dentro dos poderes da fraca razão do homem. Mas o psicanalista vem dizer-nos que toda a crença no sobrenatural, seja na graça de Deus, como no próprio Deus, na eficácia dos sacramentos ou na imortalidade da alma, são tudo idéias que dimanam de fatores instintivos, que esta psicologia se orgulha de ter descoberto e privado assim da sua força impressiva. A psicanálise não vê diferença alguma entre a religião católica, os seus usos, ritos e sacramentos por um lado, e os mais primitivos e fantásticos costumes dos aborígines da Austrália ou da África central pelo outro. Dificilmente se encontrará um artigo de fé que não tenha sido submetido à análise, e que não tenha sido objeto de uma "explicação" psicanalítica. Estas chamadas explicações causariam abalo num espírito católico, se não fossem manifestamente baseadas numa absoluta incapacidade para compreender a doutrina que se pretende explicar.

Nos parágrafos anteriores apenas nos referimos às relações da psicanálise com a fé católica sem nada termos dito a respeito da moral católica. Vamos agora dizer alguma coisa sobre tal assunto.

A psicanálise, considerada como tal, nada tem a dizer sobre moral. Quer-se uma ciência, e as ciências podem fazer afirmações apenas sobre o que é, nunca sobre aquilo que devia ser. Esta é que é a verdadeira ciência. Mas não é próprio de verdadeiros cientistas o uso que eles atualmente fazem da ciência para propagar qualquer "reforma" da moral, ou para declararem que esta ou aquela atitude está, ou deixa de estar, de acordo com a moral. Tais afirmações feitas em nome da ciência são, sem dúvida, não a expressão de conclusões que os fatos impusessem ao espírito, mas a expressão de convicções que tem uma origem completamente diferente. A ciência apenas nos pode dizer os meios de que nos podemos servir para atingir algum fim, mas nada conhece acerca desses fins. A medicina não decreta que a saúde tem de ser conservada; apenas nos ensina como devemos proceder para a conservar. A expressão, tantas vezes ouvida, de "educação científica", ou significa que devemos aprender na ciência a melhor forma para realizarmos os nossos fins, ou não significa coisa alguma.

Todo aquele que acreditar que a ciência é capaz de fazer qualquer afirmação sobre a razão por que as pessoas têm de ser educadas não conhece coisa alguma sobre a verdadeira natureza da educação. E o mesmo sucede com a moral: "ética científica" é uma expressão sem sentido algum.

Mas mesmo o cientista é um ser humano e, como tal, não pode deixar de ter as suas convicções, os seus ideais e os seus desejos. É apenas natural, embora não seja justo, que ele procure, ainda que "inconscientemente", apresentar as suas idéias e ideais pessoais como se derivassem das ciências. As ciências que têm por objeto o homem não são as que estão especialmente arriscadas a estenderem-se para um campo onde não têm competência. Pelo fato de que a saúde é um bem naturalmente desejado pelo homem, a medicina facilmente chega a acreditar que os seus ensinamentos sobre medidas higiênicas são da mesma natureza dos preceitos morais. Pelo fato de que a psicologia conhece que um espírito funcionando normalmente é um valor desejado, o psicólogo julga-se autorizado a enunciar regras sobre educação. A psicologia médica está inda mais propensa a cometer este erro do que qualquer outra espécie de psicologia. O médico psicólogo observou muitíssimas vezes as desastrosas conseqüências que uma educação errada pode ter no desenvolvimento do caráter e da personalidade. Portanto, vem simplesmente declarar que este ou aquele método de educação "tem" de ser adotado. assim, mais necessário se torna examinar cuidadosamente o espírito de uma psicologia que se julga com o direito de impor à educação os seus métodos e alvos.

Educação é mais do que instrução; é, primariamente, a construção de uma personalidade moral. A ética e a educação estão, portanto, intimamente correlacionadas. E a educação não termina depois de se ter freqüentado uma escola superior ou um colégio: praticamente, a educação nunca termina. Somos educados pelos fatos, pelas influências do meio ambiente e pelas idéias, de forma que temos de nos educar a nós mesmos.

Uma psicologia nascida dum espírito decididamente anti-cristão não pode ser senão excessivamente perigosa. Mesmo que o psicanalista se esforce por evitar qualquer ofensa às idéias e sentimentos religiosos ou morais do paciente, não o poderá conseguir. O seu método, as suas interpretações, e toda a sua mentalidade são de uma natureza manifestamente hostil ao espírito cristão. Essa mentalidade dá-se a conhecer a todo o momento, e encontra-se implícita em cada uma das mais triviais observações. Ainda que o analista esteja resolvido a abster-se de toda a influência sobre a fé ou moral do paciente, a sua resolução será ineficaz, e ele não poderá deixar de transmitir a esse paciente o contágio de um espírito anti-cristão.

Há alguma coisa profundamente errada neste espírito, e o que está errado melhor se aperceberá, se considerarmos as idéias que a psicanálise professa a respeito do homem normal. A teoria de Freud era, e ainda o é em grande extensão, um processo para a cura de doentes nervosos. Todo o tratamento tem de ter como ponto de referência alguma idéia de normalidade, porque a obtenção dessa normalidade é o sinal característico de que o tratamento foi bem sucedido. Freud disse, mais do que uma vez, que um homem é normal quando está apto a trabalhar e a gozar a vida. Não há nada mais na concepção psicanalítica sobre a natureza normal do homem. Gozar implica, sem dúvida, a adaptação à realidade, desde que, não sendo assim, o desprazer seria maior do que o prazer.

Esta concepção foi estabelecida de novo, por exemplo, por Hendriks, que declara que a culminação do desenvolvido ego consiste em o indivíduo se tornar capaz de manter a sua existência, e assegurar uma satisfação adequada dos instintos libidinais e agressivos, num ambiente socializado de adultos. Estas definições são, como se está a ver, muito incompletas; os fatores morais são absolutamente ignorados ou, antes, estão incluídos na noção de ajustamento ao meio social. É um erro largamente divulgado o acreditar-se que a moral está limitada às relações com os nossos vizinhos: desprezam os deveres para com a própria pessoa, como desprezam os deveres para com Deus.

Daqui se segue que a psicanálise se mostra incapaz de avaliar devidamente certos fenômenos, como o sentimento de culpa ou a consciência. A consciência tem origem — observa um autor — numa identificação hostil. Vê-se que este autor não teve, no seu espírito, a mais rápida visão do fenômeno a que se refere. Outro diz-nos que o desejo de confessar o pecado cometido — não precisa de ser no confessionário, porque este desejo pertence à natureza humana — resulta de um impulso de revelação, que está relacionado com o "instinto parcial" do exibicionismo. E há ainda um terceiro autor que nos vem dizer que a necessidade da confissão está relacionada com o erotismo oral. Não será preciso multiplicar os exemplos. Os três já mencionados revelam uma ignorância de tudo quanto se refere a religião e a psicologia geral.

A concepção naturalista da natureza humana vem colorir todas as afirmações feitas sobre moral. Os verdadeiros mandamentos, as leis eternas, são coisas que não existem, de acordo com este ponto de vista. E tal mentalidade não pode senão ter uma influência altamente destrutiva sobre qualquer pessoa que esteja possuída de convicções diferentes. É possível que o tratamento psicanalítico de uma pessoa nessas condições venha a ser mal sucedido, se as convicções são suficientemente fortes, e se a diferença entre elas e as do analista se nota com clareza, ou poderá ainda suceder que esse resultado um gradual desmoronamento de tais convicções, devido à pressão contínua do espírito hostil do psicanalista.

Fonte: Permanência

Rudolf Allers - Psicanálise e religião (Parte I)



Rudolf Allers — ou o "Anti-Freud", como o chamou Louis Jugnet — foi psicólogo eminente: discípulo direto de Freud, trabalhou mais de 13 anos com Alfred Adler, e exerceu considerável influência em figuras tais como Victor Frankl, que foi seu aluno. Católico, vienense, desde cedo manifestou oposição às idéias de Sigmund Freud, que considerava anticientíficas. Em 1940 publicou seu famoso trabalho "The Successful Error— A Critical Study of Freudian Psychanalysis", de onde tiramos o capítulo que se vai ler, e que constitui um pungente libelo contra os erros da psicanálise.

O naturalismo e o materialismo são, necessariamente antagônicos da religião. Uma atitude mental que introduz fatores imateriais e trans-mundanos, que sustenta uma noção como a de uma alma espiritual e que acredita na revelação, torna-se, para o espírito materialista, ininteligível, estranha e perigosa. Tal mentalidade é, verdadeiramente, o oposto do materialismo e, ao passo que as atitudes religiosas existem e permanecem eficazes na vida humana, o materialismo sente a sua posição ameaçada. Os defensores de uma explicação "científica" da realidade vêem na religião, ou um inimigo, ou, pelo menos, um estádio rudimentar da evolução, que tem de acabar por triunfar para assegurar o "progresso" definitivo da raça humana.

A psicanálise é profundamente materialista e não pode mesmo professar outra filosofia. A sua base é o materialismo. Se os sequazes de Freud abandonassem o seu credo materialista, ver-se-iam obrigados a deixar de ser psicanalistas. Há alguns que estão convencidos de que podem acreditar, ao mesmo tempo, na verdade da religião e na verdade da psicanálise, sem incorrerem em auto-contradição. Esses homens imaginam isso, ou porque não conhecem suficientemente uma coisa e outra, ou porque o seu espírito é de tal natureza que se acomoda às contradições, ou ainda talvez porque não são bastante críticos para se aperceberem de tais contradições.

Ninguém que penetre no espírito da psicanálise e, ao mesmo tempo, seja inteiramente conhecedor da essência da fé sobrenatural, pode acreditar que estas duas coisas sejam compatíveis. Já varias vezes foi declarado, tanto por autores católicos como protestantes, que a psicanálise é, basicamente anti-cristã. Não há maneira de se sair deste dilema: ou se acredita em Cristo ou na psicanálise. Os próprios sequazes de Freud não têm dúvidas a tal respeito. Para eles, a religião não significa mais do que uma manifestação particular do espírito humano, da mesma categoria que as práticas da magia, do totemismo ou da bruxaria. Sempre os psicanalistas procuraram provar que a religião é um produto de forças instintivas e da reação contra as mesmas.

Freud fala da religião como de uma "ilusão". Os ritos religiosos são assemelhados a práticas devidas à obsessão, ou identificados com as mesmas práticas. A religião é uma neurose dos grupos. Não vale a pena entrar em pormenores, porque todas as obras dos psicanalistas estão cheias de observações no mesmo sentido. Não há dúvida alguma de que a sua convicção é que a religião é um fato puramente psicológico, que é nociva e condicionada pelos mesmos fatores que condicionam a neurose nos indivíduos, e que, finalmente, para bem da humanidade, tem de ser abolida e substituída pelo reino da ciência. Era isso que Freud esperava; a "ilusão" devanecer-se-ia perante a luz da razão; a ciência substituiria a religião na cultura e na vida, e uma nova época de prosperidade reinaria, quando a ciência reinasse como senhor supremo.

Esta é a mentalidade dum homem que nasceu pouco depois dos meados do século passado, que se educou na era do materialismo, do "liberalismo" e das entusiásticas esperanças no futuro, e que foi incapaz de se libertar da escravatura daquelas impressões que lhe haviam ficado da sua adolescência. Hoje verificamos que a ciência faliu, não porque não seja uma das mais admiráveis realizações do homem ou porque se mostrasse incapaz de promover o progresso, mas unicamente porque lhe atribuíram a capacidade de realizar aquilo que, de fato, nunca poderá levar a cabo. Mas a fé otimista de Freud na ciência permaneceu inquebrantável durante mais de oito décadas de sua vida. E nós poderemos compreender a sua imutável atitude; mas o que não podemos compreender é como pessoas de uma geração posterior, que tinham obrigação de ver as coisas como elas são, podem ainda defender um credo como o cientificismo. Para pessoas desta mentalidade, a religião é apenas um fato, como muitos outros, na história da cultura humana. E essas pessoas não estão também preparadas para admitir qualquer diferença entre as religiões. O último livro de Freud é um exemplo frisante desta incapacidade de discernir certos pontos que são decisivos. Assim, ele não conhece absolutamente nada das enormes diferenças entre o monoteísmo judaico-cristão e a idéia pagã de um deus supremo. A sua concepção sobre o monoteísmo dos judeus, devida à sua aceitação da religião de Athon, a divindade do sol do Egito, mostra que não conhece a essência do verdadeiro monoteísmo, e também que não procura informar-se sobre coisas que ele mesmo era incapaz de conhecer devidamente1.

Basta um conhecimento superficial da psicanálise para que qualquer pessoa possa ver o enorme golfo que separa a mentalidade cristã daquela que se encontra implicada na concepção freudiana acerca do homem. E é verdadeiramente impressionante ler num artigo de O. Pfister que os ensinamentos de Jesus Cristo nos Evangelhos apresentam grandes analogias com a teoria da psicanálise. Mas mesmo este autor, que, segundo parece, é protestante, reconhece que há também grandes dessemelhanças. E nós só temos a dizer que, de fato, as há. Outros teólogos protestantes, como, por exemplo, o Dr. Runestam, da Universidade de Upsala, pensam diferentemente; para esses, a psicanálise é profundamente contrária ao espírito do Cristianismo.

Uma filosofia que nega o livre arbítrio; que ignora a espiritualidade da alma; que, com um oco materialismo e sem qualquer tentativa de prova, identifica os fenômenos mentais e corporais; que não conhece outro fim senão o prazer; que se entrega a um confuso e obstinado subjetivismo e que se mostrou cega à verdadeira natureza da pessoa humana — não pode ter qualquer ponto comum com o pensamento cristão. É-lhe completamente oposta.

O antagonismo existente entre a mentalidade do freudismo, de um lado, e o espírito do Cristianismo de outro, é claramente percebido por aqueles que acreditam que a religião no mundo moderno deve ser suplantada pela psicologia, que o analista deve ocupar o lugar do sacerdote e que o homem encontrará alívio para os seus sofrimentos morais e respostas às suas dificuldades pessoais no consultório do psicanalista, em vez de encontrar esse mesmo alívio na confissão que faz a um padre católico. Tal idéia assenta sobre um errado conhecimento da religião e da psicanálise; ambas estas idéias estão deturpadas. Não há qualquer similaridade entre a confissão e a análise. A confissão é um sacramento. Os espíritos modernos não atentam senão aos fatores psicológicos que nela se encontram envolvidos, mas é preciso notar-se que mesmo esses fatores não são comparáveis. O penitente diz, na confissão, as coisas que sabe, narra os fatos de que se julga culpado e, eventualmente, expõe as dificuldades que o assaltam; tudo aquilo de que ele trata é "material consciente". O confessor nunca faz qualquer tentativa de explorar o inconsciente. A esperança e a boa vontade, um profundo conhecimento e, finalmente, a graça de Deus irão ajudar o penitente a dominar os seus hábitos pecaminosos, a evitar as recaídas, a fugir às tentações e a progredir no caminho da perfeição.

Não sucede assim com o analista e o seu paciente. Neste caso, aquilo de que o paciente tem conhecimento pouco interessa; o que importa é o inconsciente. Nem um nem outro confiam na boa vontade, porque a vontade não passa de um epifenômeno, e o que é real está escondido nas profundezas do inconsciente. Não há qualquer sentimento de culpa pela infração de uma ou outra lei moral objetiva, ou pela rejeição de um valor moral, mas apenas uma constelação de tendências instintivas, o conflito entre o super-ego e o id, e assim por diante. o analista nunca poderá ocupar o lugar do sacerdote. A missão deste tem de ser desempenhada por ele e mais ninguém2.

Não há necessidade de estarmos a pôr à prova a paciência do leitor, trazendo para aqui as idéias que os psicanalistas têm defendido pelo que diz respeito à religião. Todos ele têm falado muito sobre um assunto que apenas superficialmente conhecem e, além disso, confiam largamente nas suas concepções etnológicas que, como já vimos3, estão muito longe de ser dignas de crédito. As suas conclusões relativamente a práticas religiosas, aos ritos, à psicologia da fé e a outros assuntos semelhantes, muito dificilmente poderão ser tomadas a sério. Muitas dessas idéias são positivamente ridículas e mostram uma ignorância crassa.

Temos, porém, de enfrentar uma questão. Por que é que os psicanalistas têm um tão notável interesse pela religião? Há mais obras e artigos na literatura psicanalítica que tratam de problemas mais ou menos relacionados com a religião do que se pode imaginar. Parece que o espírito analítico está possuído de uma curiosa obsessão, e que se sente incapaz de se libertar dela. Não há dúvida de que a religião tem desempenhado um importante papel na história, e continua a influenciar mais a atitude geral da humanidade do que a própria ciência. a ciência, considerada como tal, dificilmente exercer qualquer influência; não é a própria ciência, mas a crença popular nela, que tem contribuído muito para formar a mentalidade de hoje. Ora, os psicanalistas não tratam de saber as razões por que o homem chega a acreditar na ciência de forma tão exagerada. Consideram como um postulado o homem ter de acreditar na ciência, mas procuram mostrar que qualquer outra crença, especialmente no sobrenatural, tem de ser explicada por razões psicológicas. A sua atitude é inegavelmente dúbia, devido à sua crença na ciência. Esses homens estão presos ao "cientificismo". Acreditam fervorosamente na ciência, como a panacéia por meio da qual a humanidade se há de erguer a um nível muito mais elevado.

Esta atitude tem certas raízes na história dos últimos sessenta ou cem anos. No próximo capítulo diremos algumas palavras sobre este fenômeno. Mas o fenômeno não explica a curiosa fascinação que a religião, e os problemas que lhe andam ligados, exercem aparentemente sobre o espírito psicanalítico. Deve haver algum fator mais diretamente ligado com a psicanálise e com a situação presente da civilização em geral. Fazer luz sobre este ponto é coisa que se torna ainda mais desejável, porque podemos assim alimentar a esperança de penetrarmos mais na natureza da psicologia freudiana, ou antes na antropologia freudiana, e, conseqüentemente, definirmos mais claramente a política que tem de ser observada por um católico no que diz respeito à psicanálise. Todo aquele que examine conscienciosamente a psicanálise e considere os fatos fornecidos por esta psicologia, no que diz respeito à sua própria natureza, só poderá chegar a uma conclusão. E tal conclusão há de ser expressa em termos muito breves: a psicanálise é uma heresia. Esta afirmação parecerá, talvez, surpreendente. Os cristãos podem ver-se tentados a rejeitá-la, porque não vêem nenhuma relação, ou qualquer terreno comum, entre a psicanálise e a sua fé. Uma heresia — dirão eles — é uma forma deturpada da verdadeira fé, que resulta de se desrespeitar ou desvirtuar qualquer dos artigos fundamentais. Mas, seguramente, a psicanálise nada tem de comum com a fé cristã. Não altera um artigo fundamental, como faz o Arianismo em relação à pessoa de Jesus Cristo, ou como faz o Protestantismo, em relação à natureza da Igreja, ou como faz ainda o Pelagianismo, no que se refere ao papel da graça na salvação do homem. O analista, por sua vez, não levará a sério aquela afirmação. Entende ele que nada tem de ver com o Cristianismo, que as suas atividades são científicas e que a ciência é independente de toda a fé. Dirá que estuda religião apenas como um fato entre tantos outros que a história da humanidade apresenta. E acabará por afirmar que não pensa em negar ou alterar qualquer dos artigos da fé, porque, para ele, tais fatos nada significam senão uma forma particular da ignorância, uma superstição ou uma ilusão — e não se nega uma ilusão ou uma alucinação, mas apenas se trata de estudar a sua origem e curar o paciente.

1. 1.Freud adota, pelo que diz respeito à história da religião, o mesmo método que segue pelo que se refere à etnologia. Limita-se a escolher, numa abundante literatura, apenas algumas palavras que se adaptam às suas idéias preconcebidas. Assim, presta grande crédito a um livro, no qual se aventa a hipótese de que Moisés foi assassinado pelos judeus. Este trabalho foi rejeitado pelas autoridades no assunto, mas isso não impede que Freud se apoie sobre ele para os seus raciocínios. A sua teoria, de acordo com a sua maneira de pensar, não precisa de provas, pois é já de per si uma prova de todas as asserções nela contidas. Ora, isto não é maneira de proceder para um homem de ciência.Seria necessário que os psicanalistas prestassem atenção ao fato de as referências, ou testemunhos de Freud, serem tão infelizes. Sempre que escolhe um autor, trata-se de um indivíduo que não merece a consideração das autoridades do assunto em questão.

2. 2.Para melhor elucidação sobre essas questões, veja-se o meu artigo "Confessor e Alienista", Revista Eclesiástica, 1938, 99, 401.

3. 3.Allers refere-se ao capítulo 9 do livro em questão, chamado "A Psicanálise e a etnologia". [Nota da Editora]


Fonte: Permanência

S. Tomás, autor sistemático

Agora, um trecho de uma aula do Prof. Sidney Silveira, um dos maiores especialistas do tomismo combativo do Brasil.


Régine Pernoud, Luz sobre a Idade Média - O Ensino na Idade Média




O ensino na Idade Média

Do livro, Luz sobre a Idade Média (Lumière du Moyen Age).

Como em todas as épocas, a criança da Idade Média vai à escola. Em geral, à escola da paróquia ou do mosteiro próximo. Com efeito, todas as igrejas possuem uma escola. O Concílio do Latrão, em 1179, torna essa obra obrigatória, e é comum ainda hoje, na Inglaterra, país mais conservador que o nosso, encontrar reunidas igreja, escola e cemitério. Acontecia também do ensino ser assegurado por fundações senhoriais. Rosny, vilarejo das margens do Sena, tinha, desde o início do século XIII, uma escola fundada em 1200 pelo senhor local, Guy V Mauvoisin. Às vezes trata-se também de escolas simplesmente privadas: os habitantes de uma propriedade se associam para pagar um mestre encarregado do ensino das crianças. Um pequeno texto engraçado nos conservou a petição de alguns pais pedindo a dispensa de um professor que, não tendo conquistado o respeito de seus alunos, chega a ser por eles espetado com os estiletes, com os quais se escrevia em tabuinhas cobertas de cêra – eum pugiunt grafionibus.

Mas os privilegiados são, evidentemente, os que podem freqüentar as escolas episcopais ou monásticas, ou ainda as capitulares, pois os capítulos das catedrais estavam também submetidos à obrigação de ensinar, pelo mesmo Concílio do Latrão 1. Algumas delas adquirem, na Idade Média, um brilho particular, como a de Chartres, de Lyon, ou de Le Mans, onde os alunos ensinavam tragédias antigas; a de Lisieux, onde, no início do século XII, o próprio bispo gostava de vir ensinar; a de Cambrai, da qual um texto citado pelo erudito Pithou nos faz saber que foram estabelecidas para o bem do povo na gerência de seus negócios temporais.

As escolas monásticas tiveram, talvez, mais fama ainda, e os nomes de Bec, de Fleury-sur-Loire, onde foi educado o rei Roberto o Piedoso, de Saint-Géraud d'Aurillac, onde Gerbert aprendeu os primeiros rudimentos das ciências que iria elevar a tão alta perfeição, vêm naturalmente à lembrança, como ainda a de Marmoutier, perto de Tours, de Saint-Bénigne, de Dijon, etc. Em Paris encontra-se, desde o século XII, três séries de estabelecimentos escolares: a Escola Notre-Dame, ou grupo de escolas do bispado, cujo cantor da scola assume a direção para as classes menores e o chanceler do bispado para as classes avançadas; as escolas das abadias como Sainte-Geneviève, Saint-Victor ou Saint-Germain des Prés; e as instituições particulares abertas por mestres que obtiveram licença para ensinar, como Abelardo.

A criança era admitida com sete ou oito anos, prolongando-se os estudos preparatórios para a Universidade por cerca de dez anos, como hoje. São os dados registrados pelo Pe. Gilles Muisit. Os meninos estudavam separados das meninas que, em geral, tinham escolas à parte, em menor número, talvez, mas onde os estudos eram, em muitos casos, de nível elevado. A abadia de Argenteuil, onde foi educada Heloisa, ensinava às meninas as Sagradas Escrituras, letras, medicina e até cirurgia, sem falar no grego e hebreu ensinados aí por Abelardo. Em geral, as pequenas escolas davam a seus alunos noções de gramática, aritmética, geometria, música, teologia, que lhes permitia alcançar os estudos universitários. Parece também que algumas davam também algum estudo técnico. A Histoire Literaire cita, por exemplo, a escola de Vassor, na dioceses de Metz, onde, além de aprender as Sagradas Escrituras e as letras, trabalhava-se o ouro, a prata e o cobre2. Os mestres eram quase sempre ajudados pelos mais velhos e pelos melhores alunos, como acontece ainda hoje no «ensino mútuo»:

C'étoit ce belle chose de plenté d'écoliers:
Ils manoient ensemble par loges, par soliers,
Enfants de riches hommes et enfants de toiliers


Como era bonito todos aqueles escolares
Juntos em suas classes, nas salas
Filhos de ricos com filhos de pobres
Quem escreve isso é Gilles le Muisit, em suas lembranças de infância; de fato, nesta época, as crianças de todas as «classes» da sociedade eram instruídas juntas, como mostra a célebre história de Carlos Magno castigando os filhos dos barões que eram preguiçosos, ao contrário dos filhos de servos e dos pobres. A única distinção estabelecida era no custo do ensino, sendo ele gratuito para os pobres e pago para os ricos. A isenção de taxa de estudo podia prolongar-se por toda a duração da época escolar, incluindo o acesso ao mestrado, como mostra o Concílio do Latrão, já citado, que proibia aos dirigentes das escolas de «exigir dos candidatos ao professorado remuneração para conceder a licença».

Aliás, na Idade Média, quase não há diferenças na educação das crianças de diversas condições. O filho de qualquer pequeno vassalo são educados na sede senhorial com os filhos do suserano; os dos ricos burgueses passam pelo mesmo aprendizado que os do último artesão, se pretendem assumir um dia a loja paterna. É por isso, sem dúvida, que se multiplicam os exemplos de grandes personagens saídos de famílias humildes: Suger, que governou a França durante a Cruzada de Luiz VII, é filho de servo; Maurice de Sully, bispo de Paris que fez construir Notre-Dame, era nascido de um mendigo; São Pedro Damião, em sua infância, cuidava de porcos, e uma das mais brilhantes luzes da ciência medieval, Gerbert d'Aurillac, também era pastor; o Papa Urbano VI era filho de um pequeno sapateiro de Troyes, e Gregório VII, o grande Papa da Idade Média, filho de um pastor de cabras.

Por outro lado, muitos dos grandes senhores foram letrados e tiveram educação como a dos clérigos: Roberto o Piedoso compunha hinos e seqüências latinas; Guillaume IX, príncipe da Aquitania, foi o primeiro trovador conhecido; Ricardo Coração de Leão nos deixou poemas, como também os senhores de Ussel, de Baux, e muitos outros. Isso sem falar dos casos excepcionais, como o do rei de Espanha, Alfonso X, o Astrônomo, que escreveu poesias, obras de Direito, estabeleceu progresso notável nas ciências astronômicas da época, redigindo suas Tábuas Alfonsianas, deixando também vasta crônica sobre as origens da História da Espanha e uma compilação de Direito Canônico e de Direito Romano que formaram o primeiro Código de Direito de seu país.

Os alunos mais capazes seguem, naturalmente, para a Universidade. Eles a escolhem segundo sua especialidade. Em Montpellier, medicina: desde 1181, Guilheme VII, senhor da cidade, conferiu a qualquer pessoa, de qualquer lugar que viesse, a liberdade de ensinar esta arte, desde que apresentasse garantias de seu saber. Orléans se especializou em Direito Canônico, como Bolonha em Direito Romano. Mas já então, nada se comparava com Paris, onde o ensino das artes liberais e da teologia atraía estudantes de todos os lugares: Alemanha, Itália, Inglaterra, e até da Dinamarca e Noruega.

Estas Universidades são invenções eclesiásticas, como que a continuação das escolas episcopais, com a diferença que elas dependerão diretamente do Papa, e não do bispo local. A bula Parens Scientiarum de Gregório IX, pode ser considerada como a ata de fundação da Universidade medieval, com seus regulamentos estabelecidos em 1215 pelo cardeal legado Robert de Courçon, agindo em nome de Inocêncio III, e que reconhecem aos mestres e estudantes o direito de associação. Criada pelo papado, a Universidade tem características inteiramente eclesiásticas: os professores pertencem todos à Igreja, e as duas grandes Ordens religiosas que a iluminam no século XIII, Franciscanos e Dominicanos, conhecerão aí grandes glórias, com um São Boaventura e um São Tomás de Aquino.

Todos os alunos são chamados clérigos, mesmo quando não se destinam ao sacerdócio, e alguns recebem a tonsura. Mas isso não significa que só se ensinava a teologia, pois os programas incluem todas as grandes disciplinas científicas e filosóficas, gramática, dialética, além da música e geometria.

Esta «universidade» de mestres e alunos forma uma sociedade autônoma. Philippe-Augusto, desde 1200, retira seus membros da jurisdição civil – o que quer dizer, dos próprios tribunais reais. Mestres, alunos e mesmo domésticos da Universidade ficam submetidos aos tribunais eclesiásticos, o que é considerado como privilégio e consagra a autonomia desta corporação de elite. Mestres e estudantes ficam assim isentos de obrigações para com o poder central; eles próprios administram a Universidade, tomam em comum as decisões e gerenciam a caixa, sem nenhuma intromissão do Estado. Esta é a característica fundamental da Universidade medieval e certamente a que mais a distingue da atual.

Esta liberdade favorece, entre as diversas cidades, uma concorrência difícil de se imaginar hoje. Durante anos, os mestres de Direito Canônico de Orléans disputam com os de Paris para conquistar seus alunos. Os registros da Faculdade de Decreto, publicados na Coleção de Documentos Inéditos, estão cheios de queixas contra os estudantes parisienses que vão à Orléans para colar grau, pois os exames eram mais fáceis. Ameaças, expulsões, processos, de nada adiantam, e as brigas prolongam-se sem fim. Concorrência também de professores, uns muito estimados, outros menos; teses discutidas apaixonadamente, com os estudantes formando facções que chegam até a greves. A Universidade, muito mais do que em nossos dias, era, na Idade Média, um mundo agitado.

E um mundo cosmopolita: as quatro «nações» que dividem os clérigos parisienses mostram isso claramente: havia os picards, os ingleses, os alemães e os franceses. Os estudantes vindos de cada um desses lugares eram então bastante numerosos para formar um grupo autônomo, com representantes e atividades próprias. Encontram-se também nos registros nomes italianos, dinamarqueses, húngaros e outros. Os professores que ensinam vêm, também, de todas as partes do mundo: Siger de Brabant, Jean de Salisbury têm nomes significativos. Santo Alberto Magno vem da Renânia, São Tomás de Aquino e São Boaventura, da Itália. Não há neste tempo obstáculos à troca de idéias, e julga-se um mestre apenas pela extensão de seu saber. Este mundo tão variado possui uma língua comum, a única falada na Universidade: o latim. Sem o latim ela seria uma Torre de Babel. O uso do latim facilita as relações, permite as comunicações entre os mestres de um lado ao outro da Europa, dissipa de antemão qualquer confusão de expressão, protegendo assim a unidade de pensamento. Os problemas que apaixonam os filósofos são os mesmos, em Paris, em Edimburgo, em Oxford, em Colônia ou em Pádua, apesar de cada um desses centros e cada personalidade imprimir seu caráter próprio. Tomás de Aquino, vindo da Itália, termina, em Paris, de clarificar e consolidar uma doutrina cujas bases estabelecera nas aulas de Alberto Magno, em Colônia. A Sorbonne do século XIII nada tem de fechada. Gilles le Muisit resume assim a vida dos estudantes:

Clercs viennent à études de toutes nations
Et en hiver s'assemblent par plusieurs légions.
On leur lit et ils oient pour leur instruction;
En été s'en retraient moult en leurs régions
,

De todas as nações chegam os clérigos estudantes
Que se reúnem no inverno em várias legiões
Lêem e eles escutam para sua instrução
E no verão se retiram para suas regiões

De fato, o vai-vem é contínuo. Eles partem para a Universidade que escolheram, voltam para casa nas férias, viajam para assistir as lições de um mestre de renome ou estudar uma matéria numa cidade nela especializada. Já mencionamos as «fugas» dos candidatos aos exames de Direito Canônico para Orleans; isto se repete constantemente e, às vezes, entre cidades muito distantes. Estudantes e professores são habituados às grandes viagens: a cavalo e mesmo a pé, percorrem léguas e léguas, dormindo em granjas ou em hospedarias. Com os peregrinos e os comerciantes, são os que mais contribuem para a extraordinária animação que reina nas estradas na Idade Média, só reencontradas no século do automóvel, ou melhor, depois da aparição dos esportes ao ar livre. O mundo letrado era então um mundo itinerante. Era a tal ponto que, para alguns, o movimento passa a ser uma necessidade, uma mania: encontramos hoje, no Quartier Latin, estes velhos estudantes boêmios que nunca conseguiram voltar à vida normal nem usar os estudos, dos quais carregam o peso durante anos. Na Idade Média, esta espécie de indivíduo corria as estradas: era o clérigo vagabundo ou goliard, tipo bem medieval, inseparável do «clima» da época: entregue às tabernas e às mulheres, vai de um cabaré ao outro, procurando comida e principalmente um bom copo de vinho; frequenta os lugares ruins, conserva restos de saber, que usa para causar a admiração dos simples, para quem recita versos de Horácio ou pedaços das canções de gesta; inicia, levado pelos encontros ocasionais, discussões de teologia, e acaba se perdendo na multidão de trovadores, de vadios e vagabundos, quando não é enforcado por algum crime. Suas canções se espalharam pela Europa, e o mundo estudantil conhece ainda algumas destas canções:

Meum est propositum in taberna mori,
Vinum sit appositum morientis ori,
Ut dicant cum venerint angelorum chori:
Deus sit propitius huic potatori!


O que quero é na taberna morrer
Com o vinho derramado na minha boca
Para que digam quando vier ao côro dos anjos
Deus seja propício a este beberão!

A Igreja precisou intervir várias vezes contra estes clerici vagi que promoviam farras e preguiças no mundo estudantil. Mas eles eram exceções. No conjunto, o estudante do século XIII não tinha uma vida muito diferente do atual. Foram conservadas e publicadas cartas endereçadas aos pais ou a amigos 3 que revelam as mesmas preocupações que hoje em dia, ou quase: os estudos, os pedidos de dinheiro e alimentação, as provas. O estudante rico morava na cidade com seu valete; os de condição mais modesta ia em pensão na casa dos burgueses do bairro de Sainte Geneviève, e pediam isenção de toda ou de parte das taxas de inscrição da Faculdade: encontramos muitas vezes, na margem dos registros uma menção indicando que este ou aquele não pagou a inscrição, ou que pagou só a metade, propter inopiam, por causa da pobreza. O estudante sem recursos faz pequenos trabalhos para viver: é copista ou encadernador nas livrarias que têm suas lojas na rua das Escolas ou na rua Saint Jacques 4. Além disso, ele pode ter suas refeições e moradia pagas nos colégios estabelecidos. O primeiro que existiu foi criado no Hotel-Dieu (hospital) de Paris por um burguês de Londres que, retornando de uma peregrinação na Terra Santa, no fim do século XII, teve a idéia de fazer esta obra pia, favorecendo o aprendizado das pessoas modestas: ele deixou uma fundação 5 perpétua com encargo de alojar e alimentar de graça dezoito estudantes pobres que recebiam como única incumbência velar os mortos do hospital, cada um em seu turno, e carregar a cruz processional e a água benta nos enterros. Um pouco depois, funda-se o colégio Saint Honoré, o de São Tomás do Louvre, e muitos outros. Pouco a pouco, formou-se o hábito de se organizar nestes colégios sessões de estudo em conjunto, como nos seminários alemães ou os «grupos de estudo» que funcionam nas nossas Faculdades de alguns anos para cá. Os mestres passaram a vir dar algumas aulas, alguns até se estabeleceram aí, e aos poucos os colégios foram mais freqüentados que as próprias Universidades, como foi o caso do colégio da Sorbonne. No conjunto, havia um sistema de bolsas, não oficialmente organizado, mas de uso corrente, que lembrava a nossa Escola Normal Superior, sem a prova de admissão, ou ainda, ao que se pratica nas Universidades inglesas, onde o estudante bolsista recebe gratuitamente, não apenas a instrução, mas ainda casa, comida e, às vezes, as roupas.

O ensino é feito em latim e se divide em dois cursos: o trivium ou artes liberais (gramática, retórica e lógica) e o quadrivium ou ciências (aritmética, geometria, música e astronomia), o que, com as três faculdades de teologia, direito e medicina, forma o ciclo de conhecimentos. Como método é utilizado principalmente o comentário: é lido um texto, os Etymologies de Isidoro de Sevilha, as Sentenças de Pedro Lombardo, um tratado de Aristóteles ou de Sêneca, segundo a matéria ensinada, e esse texto é analisado com todos os comentários que podem ser feitos, do ponto de vista gramatical, jurídico, filosófico, lingüístico, etc. Um ensinamento sobretudo oral, dando larga parte à discussão, com as Questiones disputate, questões na ordem do dia, tratadas e discutidas pelos candidatos à licença, diante de um auditório de mestres e alunos, que muitas vezes deram origem a tratados completos de teologia ou filosofia, ou ainda certas Glosas célebres, postas por escrito, que eram também comentadas e explicadas durante os cursos. As teses sustentadas pelos candidatos ao doutorado não eram simples exposições escritas, mas verdadeiramente teses, emitidas e sustentadas diante de todo um anfiteatro de doutores e mestres, onde qualquer assistente podia tomar a palavra e apresentar suas objeções.

Como se vê, este ensino é apresentado de forma sintética, cada curso tendo um lugar próprio em relação ao conjunto, onde ele adquire seu valor real, correspondente a sua importância para o pensamento humano. Por exemplo, hoje em dia existe equivalência entre uma licença de filosofia e a licença de espanhol ou de inglês, apesar de haver muita diferença na formação desses dois tipos de disciplina. Na Idade Média pode-se ser mestre em filosofia, teologia ou direito – ou mestre ès-arts, o que implica o estudo do conjunto ou do essencial do conhecimento relativo ao homem, o trivium representando as ciências do espírito, e o quadrivium as do corpo e dos números que o regem. Toda a série de estudos, portanto, procura transmitir uma cultura geral, e só se especializa ao sair da Faculdade. Isso explica o caráter enciclopédico de sábios e letrados da época: um Roger Bacon, um Jean de Salisbury, um Alberto Magno, possuíam realmente todo o conhecimento da época e podiam se entregar sem medo, em rodízio, aos assuntos os mais diversos, sem medo de digressões, pois sua visão de base é uma visão de conjunto.

Depois das sessões de trabalho na Faculdade ou no Colégio, o estudante medieval é um esportista, capaz de percorrer etapas de várias léguas e também – os anais da época se lamentam disso com freqüência – de manejar a espada. As vezes estouram rixas nessa população agitada, nas proximidades de Sainte Geneviève ou de Saint-Germain-des-Prés, e foi por saber usar muito bem sua arma que François Villon 6 teve que deixar Paris. Os exercícios físicos lhes são tão familiares quanto as bibliotecas e, mais ainda que em outros corpos de ofícios 7, sua vida é repleta de festas e diversões que alegram o Quartier Latin. Sem falar da Festa dos Loucos e da Festa dos Bobos, que são ocasiões excepcionais, toda recepção de doutorado era seguida de cerimônias cômicas em paródias, onde mesmo os graves mestres de Sorbonne tomavam parte. Ambrósio de Cambrai, que foi chanceler da Faculdade de Direito Canônico, representou seu papel e nos deixou a narração nos Anais detalhados que escreveu. Um ser assim formado estava pronto para a ação como para a reflexão, o que sem dúvida explica como nessa época as personalidades se adaptavam às situações as mais diversas, conseguindo bom resultado: prelados combatentes, como Guillaume des Barres ou Guérin de Senlis, na Batalha de Bouvines, juristas capazes de organizar a defesa de um castelo, como Jean d'Ibelin, senhor de Beyrouth, mercadores exploradores, ascetas construtores, etc.

Aliás, a Universidade foi o grande orgulho da Idade Média; os Papas elogiam este «rio de ciência que, por seus múltiplos afluentes, banham e fecundam o terreno da Igreja universal»; assinala-se com satisfação que, em Paris, é tal o número de estudantes que ultrapassa o de habitantes 8. Todos são indulgentes para com eles, apesar de suas «irreverências» e brincadeiras, que às vezes incomodam os burgueses; eles gozam a simpatia geral. Algumas cenas de suas vidas foram esculpidas no portal Saint Etienne, de Notre-Dame de Paris: ei-los lendo e estudando, quando uma mulher vem lhes perturbar a leitura e, para a punir, é amarrada no pelourinho por ordem da autoridade. Os reis dão o exemplo dessa maneira de tratar os estudantes, como acontece com Philippe-Augusto que, após a vitória de Bouvines, envia um de seus mensageiros anunciar a vitória, em primeiro lugar, aos estudantes de Paris9.

Tudo o que é relativo ao saber era, assim, reverenciado, na Idade Média. «A deshonneur meurt à bon droit qui n'aime livre – quem não ama os livros morre na desonra», dizia um provérbio 10; e basta olhar os textos para encontrar as provas de que todo amor pela ciência era encorajado e alimentado. Citemos, entre outras, a criação, em 1215, de uma cadeira de teologia, em Paris, especial para permitir aos padres da diocese de aperfeiçoar e completar seus estudos, o que mostra a preocupação em manter um alto grau de instrução, mesmo no clero mais humilde. O prud'homme, este tipo de homem completo que foi o ideal do século XIII, devia necessariamente ser letrado:

Pour rimer, pour versifier,
Pour une lettre bien dicter,
Si métier fut, pour bien écrire
Et en parchemin et en cire,
Pour une chanson controuver
11

Para rimar e versificar,
Para uma carta bem ditar,
E precisando escrever
No pergaminho ou na cêra,
Para compor uma canção

Diante disso, podemos nos perguntar se o povo era tão ignorante, na Idade Média, como se acredita em geral; ele tinha ao seu alcance, incontestavelmente, os meios para se instruir, e a pobreza não era um obstáculo, visto que as aulas podiam ser inteiramente grátis, da escola do vilarejo, ou melhor, da paróquia, até a Universidade. E ele aproveitava-se disso, pois são numerosos os exemplos de pessoas humildes que viraram grandes clérigos.

Quer isso dizer que a instrução era tão generalizada quanto hoje? Parece claro que, neste ponto, houve um malentendido: assimilou-se, mais ou menos, cultura a alfabetização. Para nós, um iletrado é fatalmente, um ignorante. Ora, o número de iletrados era, sem dúvida, maior na Idade Média do que em nossa época12. Mas, seria justo esse ponto de vista? Pode-se fazer do conhecimento do alfabeto o critério da cultura? Do fato da educação ser sobretudo visual, pode-se concluir que o homem só se educa pela visão?

Num capítulo dos Estatutos Municipais da cidade de Marselha, datado do século XIII, estão enumeradas as qualidades de um bom advogado, e lê-se: litteratus vel non litteratus – que seja letrado ou não. Isso é importante: pode-se, então, ser um bom advogado e não saber nem ler nem escrever – conhecer o costume, o direito romano, o manejo da linguagem, e ignorar o alfabeto. Essa noção é difícil de ser imaginada para nós, mas é capital para se compreender a Idade Média: a instrução é feita mais pelo ouvido que pela leitura 13. Por mais importância que se dê aos livros ou aos escritos, estes têm lugar secundário; o papel principal cabe à palavra, ao verbo. E isso acontece em todos os setores da vida: atualmente, qualquer funcionário escreve relatórios; na Idade Média, eles se aconselhavam e deliberavam. Uma tese não era uma obra impressa, mas uma discussão; um negócio fechado não era uma assinatura firmada ao pé de um escrito, mas a tradição manual (de um objeto simbólico, como um naco de terra na compra de um terreno) ou o engajamento verbal. Governar é se informar, pesquisar... e enviar os arautos «gritarem» as decisões tomadas.

Um elemento essencial da vida medieval foi a pregação. Pregar, nesta época, não era discursar em monólogos com termos pré escolhidos, diante de um auditório silencioso e cativado. Pregava-se em toda parte, não apenas nas igrejas, mas também nos mercados, nas feiras, nos cruzamentos das estradas – pregações vivas, cheias de fogo e de fuga. O pregador se dirigia ao auditório, respondia suas perguntas, admitia suas contradições, seus rumores, suas apóstrofes. Um sermão agia sobre a população, podia provocar, na hora, uma Cruzada, propagar uma heresia, causar uma revolta. O papel didático dos clérigos era imenso: eram eles que ensinavam aos fiéis sua história e suas lendas, sua ciência e sua fé. Eles que anunciavam os grandes acontecimentos, que transmitiram, de um canto ao outro da Europa a tomada de Jerusalém ou a perda de Saint Jean d'Acre. Eles que aconselhavam a uns e guiavam os outros, mesmo nos negócios profanos. Hoje, os que faltam de memória visual, mais automática, necessitando menos do raciocínio que a memória auditiva, têm dificuldades nos estudos e na vida. Na Idade Média não era assim, recebia-se a instrução escutando, e a palavra era de ouro.

Coisa curiosa, nossa época assiste à volta da importância do verbo e o reaparecimento desse elemento auditivo que se perdera. Podemos pensar que o rádio terá, para as gerações que virão, o papel que teve outrora a pregação; desejamos, ao menos, que ele seja equivalente, no que toca a educação do povo.

É na Idade Média que podemos ver realizado o termo «cultura latente». Todos, na época, têm um conhecimento, pelo menos corrente, do latim falado, e canta o gregoriano, o que supõe, senão a ciência, ao menos o uso da acentuação. Todos possuem uma cultura mitológica e legendária; ora, as fábulas e os contos falam mais sobre a história da humanidade e sua natureza que boa parte das ciências inscritas nos programas oficiais das escolas. Nos romances de ofícios publicados por Thomas Deloney, vemos os tecelãos citarem em suas canções Ulisses e Penélope, Ariana e Teseu. Se chamaram os vitrais de «Bíblia dos iletrados», foi porque os ignorantes reconheciam aí histórias que lhes eram familiares, realizando com toda simplicidade este trabalho de interpretação que tanto atrapalha nossos arqueólogos!

Além disso, havia os conhecimentos técnicos que eram assimilados durante os anos de aprendizado. Nem arte, nem ofício, eram improvisados: era preciso, para exercê-los bem, que eles se tornassem como que uma segunda natureza; era assim, sem dúvida, que tantos artistas locais, para sempre perdidos no anonimato, puderam adquirir esta destreza que aparece em obras como o Devoto Cristo, de Perpignan, ou a Crucifixão, de Venasque. Pode-se chamar de ignorante um homem que conhece tudo de sua arte, por mais humilde que seja? E devemos considerar que, a estes conhecimentos do ofício vêm se juntar diversas tradições: o Compost des Bergiers, que uma feliz curiosidade permitiu ser redescoberto, há pouco tempo, nos oferece um exemplo dessas pequenas Sumas do saber tradicional: astronomia, medicina, botânica, meteorologia, que podia ser adquiridos dentro de cada ofício, variando de um para outro, e que constituía a base de uma cultura certamente mais vasta e mais adaptada às necessidades locais do que poderíamos crer.

[Lumière du Moyen Age, Editions B. Grasset, Paris, 1944, cap. 8. Tradução PERMANÊNCIA]

1.«Em cada diocese, escreve Luchaire, além das escolas rurais ou paroquiais que já existiam... os capítulos e os principais mosteiros tinham suas escolas, seus professores e alunos».(La Société Française au temps de Philippe-Auguste, p.68).
2.L.VII, cap.29, citado por J.Guiraud, Histoire partiale, histoire vraie, p.348.
3.Cf. Haskins, The life of medieval students as illustrated by their letters, in Americain historical review, III (1892), nº 2.
4.[N. da P.] Essas duas ruas existem ainda hoje e ficam próximas da famosa igreja de Saint Nicolas du Chardonet, conquistada pelos tradicionalistas em 1977, ainda hoje um comovente reduto da verdadeira fé.
5.[N. da P.] Chama-se uma fundação um valor destinado a ser aplicado para que os juros sejam usados em determinadas obras. A Igreja aceita fundação de missas: um valor ou bem é doado, sendo estabelecido certo número de missas anuais nas intenções.
6.[N. da P.] François Villon (1431-1489) - Poeta francês de vida agitada, mas considerado por muitos como principal responsável pela formação da língua francesa.
7.Assinalemos que a Idade Média não conhece distância entre os ofícios manuais e as profissões liberais. Os termos mostram bem isso: chama-se mestre tanto o tecelão que terminou seu aprendizado quanto o estudante de teologia que obteve a licença.
8.A afirmação não pode ser seguida ao pé da letra, mas não deixa de ser interessante saber que, na época, a população de Paris somava quarenta mil habitantes.
9.Com a experiência que já temos da vida medieval e do espírito dos seus homens, podemos compreender que nada havia de demagogia nesta atitude do rei.
10.Renart, Prov. franç., II, 99.
11.Citado pela Histoire littéraire, t.XX.
12.Apesar de serem menos do que se costuma dizer, pois a maioria das testemunhas que aparecem nos atos de tabelião sabem assinar, sendo um exemplo, entre outros, o de Joana d'Arc, pequena camponesa que, no entanto, sabia escrever.
13.[N. da P.] É interessante saber que, nos mosteiros beneditinos, ainda hoje têm muita importância as reuniões da comunidade, ou de parte da comunidade, para o que se chama de «conferência»: o abade, ou o mestre de noviços, fala aos monges, os quais, imperceptivelmente, vão assimilando as verdades e os costumes do mestre.


Fonte: Permanência

Sócrates e Platão

Pessoal, peço-vos perdão por não publicar o excelente texto completo, é por que não o tenho! Também não publicarei a parte que fala sobre Aristóteles, que seria importantíssima. Tirei este texto do famoso Site Consciência.org, e penso que eles não devem ter sido autorizados para publicar o importante livro todo, por isso está incompleto. Desculpa!
Noções de História da Filosofia (1918)
Manual do Padre Leonel Franca.
CAPÍTULO I I
SEGUNDO PERÍODO — (450-300 α. C.)
22. CARÁTER GERAL Ε DIVISÃO — Neste período atinge a filosofia grega o apogeu do desenvolvimento. Surgem os seus maiores pensadores, que, vindicando os direitos da razão contra o ceticismo geral, constróem sobre bases mais sólidas uma síntese grandiosa do saber e elaboram, nos vários domínios da filosofia, um nácleo considerável de teses, que ficarão definitivamente incorporadas no patrimônio intelectual do gênero humano. Apesar de serem as questões morais as que inauguram o período, a sua feição característica é metafísica.
Como em todos os tempos de grande esplendor filosófico as escolas desaparecem na penumbra e avultam grandes individualidades.
Sócrates, Platão e Aristóteles cifram a glória deste período, escrevendo seus nomes entre os dos mais profundos pensadores da humanidade.

§ 1.° — Sócrates

23.BIOGRAFIA DE SÓCRATES — Filho de Sofrônico, escritor, e de Fenarete, par-teira, nasceu Sócrates em Atenas, no ano 469 a. C. Na sua moci-dade. seguiu a profissão do pai, entregando-se mais tarde exclusivamente ao estudo da sabedoria. Desempenhou alguns cargos políticos e foi sempre modelo irrepreensível de bom cidadão. Combateu em Potidéia, onde salvou a vida de Alcibíades e em Delium, onde carregou aos ombros a Xenofonte, gravemente ferido. Pro’ clamado o mais sábio dos homens pelo oráculo de Delfos e dizendo–se inspirado do céu (O gênio ou demônio de Sócrates, variamente interpretado pelos críticos) empreendeu a reforma dos costumes na cidade corruta de Péricles. A liberdade de seus discursos e a feição austera de seu caráter, a par de admiradores entusiastas, atraíram-lhe também caluniadores e inimigos sem consciência. Acusado em idade avançada de corromper a juventude e de introduzir divindades novas recusou defender-se e foi condenado a bc-ber cicuta. A narração de seus derradeiros instantes e do último entretenimento com seus discípulos sobre a imortalidade da alma (Phaedo, de Platão) conta-se merecidamente entre as páginas mais belas e dramáticas de toda a literatura. Morreu em 399 a. C.
Sócrates nada deixou escrito. Suas doutrinas expunha-as em ensino oral nas praças e nos mercados, nos pórticos e nas oficinas, aos mais variados auditórios. O que dele sabemos foi-nos transmitido pelos seus discípulos Xenofonte e Platão. Xenofonte, de estilo simples e harmonioso, mas sem brilho nem profundidade, nas suas "Memorabilia", legou-nos de preferência o aspecto prático e moral da doutrina do mestre. Platão, sublime e cintilante," desenvolve nos seus numerosos diálogos, o sistema de Sócrates em toda a sua amplidão. Nem sempre, porém, é fácil discernir o fundo socrático das especulações acrescentadas pelo genial discípulo (23).
Nas doutrinas de Sócrates podemos distinguir a parte polêmica, em que combate os sofistas, e a parte dogmática, em que expõe suas idéias sobre as diferentes partes da filosofia.
24. MÉTODO DE SÓCRATES — A. É a parte polêmica. Insistindo no perpétuo fluxo das coisas e na variabilidade extrema das impressões sensitivas determinadas pelos indivíduos que de contínuo se transformam, concluíram os sofistas pela impossibilidade absoluta e objetiva do saber. Sócrates restabelece-lhe a possibilidade, determinando o verdadeiro objeto da ciência.
O objeto da ciência não é o sensível, o particular, indivíduo que passa, é inteligível, o conceitoque se exprime pela definição. Este conceito ou idéia geral obtém-se por um processo dialético por êle chamado indução e que consiste em comparar vários indivíduos da mesma espécie, eliminar-lhes as diferenças individuais, as qualidades mutáveis e reter-lhes o elemento comum, estável, permanente, a natureza, a essência da coisa. Por onde se vê que a indução socrática não tem o caráter demonstrativo do moderno processo lógico, que vai do fenômeno à lei, mas é um meio de generalização, que remonta do indivíduo à noção universal.
B. Praticamente, na exposição polêmica e didática destas" idéias, Sócrates adotava sempre o diálogo, que revestia uma dúplice forma, conforme se tratava de um adversário a confutar ou de um discípulo a instruir. No primeiro caso, assumia humildemente a atitude de quem aprende e ia multiplicando as perguntas até colher o adversário presunçoso em evidente contradição e constrangê-lo à confissão humilhante de sua ignorância. É a ironia socrática. No segundo caso, tratando-se de um discípulo (e era muitas vezes próprio adversário vencido) multiplicava ainda as perguntas, diri-gindo-as agora ao fim de obter por indução dos casos particulares e concretos, um conceito, uma definição geral do objeto em questão. A este processo pedagógico, em memória da profissão materna, denominava êle maieutica ou engenhosa obstetrícia do espírito, que facilitava a parturição das idéias.
(23) Referindo-se a Platão costumava Sócrates dizer: "Que coisas me féz dizer esse. jovem nas quais eu nunca pensara!"
25. DOUTRINAS FILOSÓFICAS — "Conhece-te a ti mesmo" é o lema em que Sócrates cifra tôda a sua vida de sábio. O .perfeito conhecimento do homem é o objetivo de todas as suas especulações e a moral, o centro para o qual convergem todas as partes da sua- filosofia. A psicologia serve-lhe de preâmbulo, a teodicéia de estímulo à virtude e de natural complemento da ética.
A. Em psicologia, Sócrates professa a espiritualidade e imortalidade da alma, distingue as duas ordens de conhecimento, sensitivo e intelectual, mas não define o livre arbítrio, identificando a vontade com a inteligência.
B. Em teodicéia, estabelece a existência de Deus: a) com o argumento teológico, formulando claramente o princípio: tudo o que é adaptado a um fim é efeito de uma inteligência (Memorab., I, 4: IV, 8); b) com o argumento, apenas esboçado, da causa eficiente: se o homem é inteligente, também inteligente deve ser a causa que o produziu; c) com o argumento moral: a lei natural supõe um ser superior ao homem, um legislador, que a promulgou e sancionou. Deus não só existe, mas é também Providência, governa o mundo com sabedoria e o homem pode propiciá-lo com sacrifícios e orações. Apesar destas doutrinas elevadas, Sócrates aceita em muitos pontos os preconceitos da mitologia corrente que ele aspira reformar.
C. Moral. É a parte culminante da sua filosofia. Sócrates ensina a bem pensar para bem viver. O meio único de alcançar a felicidade ou semelhança com Deus, fim supremo do homem, é a prática da virtude. A virtude adquire-se com a sabedoria ou, antes, com ela se identifica. Esta doutrina, uma das mais características da moral socrática, é conseqüência natural do erro psicológico de não distinguir a vontade da inteligência. Conclusão: grandeza moral e penetração especulativa, virtude e ciência, ignorância e vício são sinônimos. "Se músico é o que sabe música, pedreiro o que sabe edificar, justo será o que sabe a justiça".
Sócrates reconhece também, acima das leis mutáveis e escritas, a existência de uma lei natural — αγραφοι νόμοι — independente do arbítrio humano, universal, fonte primordial de todo direito positivo, expressão da vontade divina promulgada pela voz interna da consciência.
Sublime nos lineamentos gerais de sua ética, Sócrates, em prática, sugere quase sempre a utilidade como motivo e estímulo da virtude. Esta feição utilitarista empana-lhe a beleza moral do sistema (24).
(24) "A doutrina puramente utilitária ensinada por Sócrates neste lugar (Memorab, TV, 5, 8, 9) bastaria, por sl só, a caracterizar a ética socrática e distanciá-la infinitamente da moral cristã. Não se pode compreender como escritores cristãos… possam no seu entusiasmo inconsciente pelo grande moralista ateniense asseverar que à ética de Sócrates só falta para ser cristã a mais alta luz do conhecimento de Deus e de si próprio". Latino Coelho, Introdução à oração da coroa. p. 236, em nota.
26. IMPORTÂNCIA Ε INFLUÊNCIA DE SÓCRATES — A reforma socrática atingiu os alicerces da filosofia. A doutrina do conceito determina para sempre o verdadeiro objeto da ciência: a indução dialética reforma o método filosófico; a ética une pela primeira vez e com laços indissolúveis a ciência dos costumes à filosofia especulativa. Não é, pois, de admirar que um homem, já au-reolado pela austera grandeza moral de sua vida, tenha, pela novidade de suas idéias, exercido sobre os contemporâneos tamanha influência. Entre os seus numerosos discípulos, além de simples amadores, como Alcibíades e Eurípedes, além dos vulgarizadores da sua moral (socratici viri), como Xenofonte, havia verdadeiros filósofos que se formaram com os seus ensinamentos. Dentre estes, alguns, saídos das escolas anteriores não lograram assimilar toda a doutrina do mestre; desenvolveram exageradamente algumas de suas partes com detrimento do conjunto. São os fundadores das escolas socrâticas menores, das quais as mais conhecidas são:
A. A escola de Megara, fundada por Euclides (449-369), que tentou uma conciliação da nova ética com a metafísica dos eleatas e abusou dos processos dialéticos de Zenão.
Β. A escola cínica, fundada por Antístenes (n. c. 445) que, exagerando a doutrina socrática do desapego ‘das coisas exteriores, degenerou, por último, em verdadeiro desprezo das conveniências sociais. São bem conhecidas as excentricidades de Diogenes.
C. A escola cirenaica ou hedonista, fundada por Aristipo (n. c. 425) que desenvolveu o utilitarismo do mestre em hedonismo ou moral do prazer.
Estas escolas, que, durante o segundo período,- dominado pelas altas especulações de Platão e Aristóteles, verdadeiros continuado-res da tradição socrática, vegetaram na penumbra, mais tarde re-cresceram transformadas ou degeneradas em outras seitas filosóficas. Dos megáricos brotaram os céticos e pirrônicos, dos cínicos saíram os estóicos, dos hedonistas originaram-se os epicureus.
Dentre o discípulos de Sócrates, porém, o herdeiro genuíno de suas idéias, o seu mais ilustre continuador foi o sublime Platão.
BIBLIOGRAFIA
A. Fouillée. La Philosophie de Socrate, 2 vols., Paris, 1874; — Cl. Piat, Socrate"*, Paris, 1912; — P. Landormy, Socrate, Paris, 1900; — K. Joel, Der echte und der xenophontische Socrates, 2 vols. Berlin, 1893-1901;
— Α. Dörtng. Die Lehre des Socrates als soziales Reformsystem, München, 1905; — Ε. Pfleiderer,Socrates, Plato und ihre Schüler Tübingen, 1396;
— H. Maier, Sokrates, sein Werk und seine geschichtliche Stellung, Tübingen. 1913; — A. Busse, Sokrates, Berlin, 1914; — G. Kafka, Sokrates, Piaton u. d. sokrat Kreis. München. 1921; — A. Labriola, Socrate, Nuova edizione α cura di Β. Croce, Bari, 1909; — G. Zuccante, Socrate,Torino, 1909; — A. J. Festugière. Socrate, Paris, 1934.
Índice alfabético da bibliografia socrática por P. K. Bizukides,Leipzig, 1921.
Escolas socrâticas. A. Wendt, De filosofia cirenaica, Göttingen, 1841;
— Η. de Stein, De filosofia cirenaica, Göttingen. 1885.
J. Gefecken Kynika und Verwandtes, Heidelberg, 1909.
D. R. Dudley, A history of cynicism from Diogenes to the 6th. Century, London, 1937.
D. Henne, École de Mégare, Paris, 1843; — C. Maillet, Histoire de l’école de Mégare et des écoles d’Elis et d’Éretrie, Paris, 1845.

§ 2.° — Platão

27. VIDA Ε OBRAS — Nasceu Platão em Atenas, no ano 427 a. C. Filho de família aristocrática e abastada, entregou-se na juventude ao estudo das ciências, sob o magistério de Cratilo, discípulo de Heráclito, passando mais tarde para a escola de Sócrates a quem ouviu por quase dez anos. Por morte do mestre, retirou–sé para Megara, donde empreendeu uma série de viagens ao Egito, à Itália e à Sicília. De volta à Grécia, estabeleceu-se definitivamente em Atenas, abrindo sua escola, que do ginásio de Academus, onde se congregava, recebeu o nome de Academia. De então até a morte, ocorrida em 347, ocupou-se exclusivamente em ensinar e escrever.
Platão é o primeiro filósofo antigo de quem possuímos as obras completas. Dos 35 diálogos, porém, que correm sob o seu nome muitos são apócrifos, outros de autenticidade duvidosa (25).
A forma dos escritos platônicos é o diálogo, transição espontânea entre o ensinamento oral e fragmentário de Sócrates e o método estritamente didático de Aristóteles. No fundador da Academia, o mito e a poesia confundem-se muita vez com os elementos puramente racionais do sistema (26). Faltam-lhe ainda o rigor, a precisão, o método, a terminologia científica que tanto caracterizam os escritos do sábio estagirita.
28. VISTA GERAL DA FILOSOFIA DE PLATÃO — TEORIA DAS IDÉIAS — Sócrates mostrara no conceito o verdadeiro objeto da ciência. Platão aprofunda-lhe a teoria e procura determinar a relação entre o conceito e a realidade fazendo deste problema o ponto de partida da sua filosofia.
A ciência é objetiva; ao conhecimento certo deve corresponder a realidade. Ora, de um lado, os nossos conceitos são universais, necessários, imutáveis e eternos (Sócrates), do outro, tudo no mundo é individual, contingente e transitório (Heráclito). Deve, logo, existir, além do fenomenal, um outro mundo de realidades, objetivamente dotadas dos mesmos atributos dos conceitos subjetivos que as representam. Estas realidades chamam-se Idéias. As idéias não são, pois, no sentido platônico, representações intelectuais, formas abstratas do pensamento, são realidades objetivas, modelos e arquétipos eternos de que as coisas visíveis são cópias imperfeitas e fugazes (27). Assim a idéia de homem é o homem abstrato perfeito e universal de que os indivíduos "humanos são imitações transitórias e defeituosas.
(25) Aplicando os critérios de ordem interna externa, a crítica moderna considera hoje como certamente autênticos os seguintes diálogos: Phaedro, Protagoras, Convívio, Gorgias, República, Timeu, Theateto, Pheáo, Leis. Certamente apócrifos são: Alcibiades (2.°), Theages, Minos, Clitofonte, Epinomides, Hiparco e as Epístolas (a 7.provavelmente autêntica). Os outros são de autenticidade duvidosa. Como mais provavelmente autênticos podem considerar-se:Criton, Eutifron, Hipias menor, Charmides; Laches, Lisis Eutidemo, Menos, Cratilo, Filebo, Critlas e a Apologia de Sócrates. Alcibiades 1.°, Ion, Menexeno, Hipias maior, são mais provavelmente apócrifos.
cronologia dos diálogos platônicos é outra vexata quaestio entre os críticos. Costuma-se, geralmente, distinguir 3 fases na vida intelectual de Platão. A primeira é a socrática, a que pertencem quase todos os diálogos morais; a influência do mestre sobre Platão Jovem é ainda eensível. Na segunda fase, mais pessoal, Platão, atingindo a plenitude de sua individualidade e pujança intelectual, delineia os traços da sua construção sistemática. A esta fase se referem os diálogos em que se agitam questões metafísicas. A terceira fase pitagórlca é de Platão velho; traz evidentes vestígios de pitagorismo.

(26) "Plato, diz S. Tomaz, habult malum modum docendi. Omnia enim figurate dielt et per symbola docet, intendens aliud per verba quam sonant ipsa verba, sicut quum dixit, animam esse circulum". In I de Anima, lect. VIII.
(27) Alguns neoplatônicos cristãos, β sobretudo S. Agostinho interpretaram mais benignamente a teoria das idéias, considerando-as não como realidades Isoladas, mas como causas exemplares, lmagens-arquétipos das poisas existentes na mente divina. Seguem a S. Agostinho, entre oe modernos(...)